O Ministério Público de Araçatuba (SP) instaurou um inquérito civil para investigar possíveis violações ao Estado laico, que garante a liberdade religiosa e a separação entre política e religião. A investigação foi motivada por denúncias de práticas religiosas em instituições públicas municipais e estaduais, incluindo escolas e órgãos da administração.
O inquérito foi aberto após o promotor Joel Furlan receber um ofício do Conselho Tutelar II noticiando eventual prática religiosa na Escola Estadual Maria do Carmo Lélis, com anuência da gestão escolar.
Além disso, o Ministério Público recebeu informações sobre a realização de orações com todos os servidores públicos da Secretaria de Assistência Social do Município de Araçatuba, mesmo com opinião contrária de uma servidora. Na mesma denúncia feita à Promotoria, há relatos de que essa prática tem sido recorrente no governo municipal.
A investigação também abrangerá a exposição de crianças em mídias sociais relacionada às atividades religiosas. Embora a Administração Municipal tenha informado que a prática de orações cessou após notificação, o representante do MP entende que é preciso investigação mais aprofundada em todos os órgãos da Administração Municipal e nos órgãos de educação do Estado.
Neutralidade
O promotor Joel Furlan cita, na portaria de instauração do inquérito civil, que o princípio da laicidade, previsto nos artigos 5º, inciso VI, e artigo 19, inciso I, da Constituição Federal, impõe ao Poder Público a neutralidade e a vedação de estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los ou embaraçar-lhes o funcionamento. O Estado não pode manifestar filiação a determinada religião, devendo manter separação e autonomia entre política e religião.
Conforme argumentação do Ministério Público, a Constituição de 1988 reconheceu a existência de pluralidade de crenças religiosas no país e a importância da religião na vida dos cidadãos, mas optou por proteger o Estado da influência sociopolítica e religiosa das igrejas, cultos e outros, posicionando-se de forma neutra.
“A laicidade do Estado tem caráter expansivo e não restritivo, voltando-se para medidas que promovem a inclusão e protegem do preconceito e da discriminação todo modo de crer e de não crer”, escreveu o representante do MP.
Câmara de Araçatuba
Em julgamento anterior sobre leitura de texto da Bíblia no início dos trabalhos na Câmara de Vereadores de Araçatuba, a Justiça decidiu que o Legislativo, por se tratar de ente público integrante de Estado laico, não pode manifestar filiação a determinada religião em detrimento das inúmeras outras existentes.
O Ministério Público destacou, ainda, que práticas semelhantes revelam nítido privilégio para a religião Cristã em detrimento das demais que não se pautam nos ensinamentos bíblicos, bem como daqueles que manifestam ausência de crença, ofendendo também o princípio da isonomia.
Ofícios
A portaria do MP determinou o envio de ofícios para a Secretaria Municipal de Educação de Araçatuba, Unidade Regional de Ensino de Araçatuba, Fazenda Pública do Município de Araçatuba e Fazenda Pública do Estado de São Paulo, cientificando-as da instauração do inquérito civil e da possibilidade de interposição de recurso no prazo de cinco dias.
Também serão expedidos ofícios para todas as Secretarias Municipais, Escolas Municipais e Escolas Estaduais de Araçatuba para ciência e informação sobre o teor da portaria.
Alunos nas mídias
A Escola Estadual Maria do Carmo Lélis foi especificamente notificada para informar, em 30 dias, os nomes dos alunos que aparecem nas mídias anteriormente enviadas, com qualificação completa e endereços, bem como indicar se os pais autorizaram a exposição nas redes sociais.
Este caso, ocorrido em setembro de 2025, envolve a participação do vereador João Pedro Pugina (PL), que teria participado de um evento de conotação religiosa dentro da escola e divulgado imagens de alunos em suas redes sociais. Na ocasião, ele foi, inclusive, foi oficiado pelo MP a prestar esclarecimentos sobre os fatos. A Câmara de Vereadores foi cientificada da instauração do inquérito.
Outro lado
A assessoria de imprensa da Prefeitura de Araçatuba enviou a seguinte nota sobre o assunto:
“A administração municipal respeita o caráter laico da gestão pública. Não há nenhum ato administrativo de cunho religioso como prática de gestão nas repartições municipais. Nada impede, porém, que algum servidor faça, por iniciativa própria, alguma oração.”
A Secretaria de Estado da Educação também se manifestou:
“A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) informa que a Unidade Regional de Ensino (URE) de Araçatuba foi notificada pelo MP e atenderá às solicitações.
Ressaltamos que a notificação refere-se ao projeto “Ouse se Importar – Ler, Viver e Transformar”, que integra o conjunto de ações pedagógicas vinculadas à campanha Setembro Amarelo, tendo como foco a valorização da vida, a empatia e a solidariedade, em consonância com as diretrizes da BNCC, do Programa Ensino Integral (PEI) e da Política Estadual de Educação Integral da Seduc-SP.
Todas as atividades realizadas respeitam os princípios do Estado laico, assegurando a liberdade de participação dos estudantes e evitando qualquer imposição de natureza religiosa.
A URE de Araçatuba segue à disposição do órgão para mais esclarecimentos.”


