A entrega de 26 certidões de óbito retificadas marcou um dos momentos mais emblemáticos do 2º Encontro Nacional de Familiares de Pessoas Mortas e Desaparecidas Políticas (Enafam), realizado nesta semana em Brasília. Entre elas está a de Ezequias Bezerra da Rocha, geólogo paraibano morto sob tortura pela Ditadura Militar, em 1972, no Recife (PE).
O gesto, classificado por familiares como um ato de memória e justiça, integra a retomada das ações da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), que completa 30 anos em 2025. Nos últimos meses, a Comissão intensificou buscas, análises documentais e correções de registros oficiais, consolidando avanços na política de memória.
Embora a certidão tenha sido oficialmente retificada em Brasília, a família de Ezequias optou por não recebê-la no evento.
“Preferimos que o documento seja entregue em Recife, onde ele foi assassinado. É um gesto simbólico e uma forma de honrar meu tio Edinaldo, que dedicou décadas à busca por verdade”, afirmou Fernanda Rocha, sobrinha de Ezequias.
Natural de João Pessoa, Ezequias era formado em Geologia pela UFPE e havia sido aceito para o mestrado em Geofísica na UFBA. Casado há apenas um ano com Guilhermina Bezerra da Rocha, planejava seguir carreira acadêmica na Europa Oriental. Os relatos preservados por familiares o descrevem como um jovem de forte compromisso com a democracia e com a educação como ferramenta de transformação social.
A vida promissora, porém, foi interrompida quando ele desapareceu em 11 de março de 1972. Detido pelo DOI do IV Exército, órgão central da repressão, Ezequias foi submetido a torturas extremas antes de ser morto. Laudos médicos confirmam agressões graves, classificadas por pesquisadores como uma das mais brutais registradas no Nordeste.
Guilhermina também foi presa na mesma operação e tornou-se testemunha das violências sofridas pelo marido. Ela morreria cinco anos depois, em 1977, em um acidente de trânsito em Teresina (PI), episódio que a família considera envolto em dúvidas até hoje.
A história do casal não desapareceu com as décadas. Foi preservada por Bento Bezerra, sobrinho de Guilhermina, e transmitida silenciosamente entre familiares — silêncio que Fernanda decidiu transformar em ação.
“Meu pai sempre dizia que não existe reparação capaz de compensar a perda de um familiar. Cresci ouvindo fragmentos dessa história e, quando adulta, entendi a dimensão dessa dor. A Comissão fala em 434 mortos e desaparecidos, mas sabemos que o número é maior e que ninguém foi responsabilizado”, afirma Fernanda.
Ela defende a revisão da Lei de Anistia como etapa essencial para a responsabilização de agentes da repressão.
Durante o Enafam, familiares circularam pelos corredores do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania carregando retratos, memórias e cicatrizes que atravessam gerações. O encontro reuniu pais, filhos, irmãos e netos em uma programação de escutas, apresentações de balanço, homenagens e formulação coletiva de ações para o próximo ano.
Nos relatos apresentados, destacou-se o papel fundamental da Arqueologia e da Antropologia Forense, áreas essenciais para a identificação de restos mortais ainda não localizados após mais de cinco décadas.
Além das entregas em Brasília, outras 63 certidões foram corrigidas em Minas Gerais e 102 em São Paulo em 2025, reforçando o compromisso de reconstruir a verdade histórica.



