A Banalidade do Bem

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Foto: Luan Porto / Revide

Dentre as várias figuras às quais devo a minha formação intelectual, duas emergem entre as principais, Hannah Arendt e Albert Camus. Curioso é que as imagens que me chegam quando me lembro delas sempre estão associadas ao cigarro. Dela, com ele entre os dedos. Dele, como que escorregando do canto de sua boca. Péssima lembrança para quem acaba de deixar de fumar.

Hannah foi alvo de uma tremenda incompreensão. Ao cobrir o julgamento de um dos maiores criminosos nazistas para a revista New Yorker nas reportagens que deram origem ao livro Eichmann em Jerusalém, ela ousou descrever aquela figura como um burocrata cumpridor de ordens que cometia os seus crimes como quem apara as unhas ou assovia. Daí nasceu a terrível campanha contra ela por ter criado a expressão “a banalidade do Mal”. Não souberam ler ou não quiseram entender: o Nazismo o banalizou. Fenômeno humano quando o queriam diabólico. O demônio foi, definitivamente, subalternizado. Pior, por homens comuns. Carrascos voluntários.

A literatura do Nobel franco-argelino Albert, já seria enorme por conta d´O Estrangeiro, A Queda, O Homem Revoltado, mas veio acrescida de uma ópera máxima que é o oportuno livro A Peste.

Camus metaforiza o domínio nazista na Europa comparando-o com uma epidemia de peste bubônica que deveras ocorreu em sua terra, Argélia, na cidade de Orã, logo depois da Segunda Guerra, em 1947.

Um número incontável de ratos invade a cidade do litoral argelino onde o próprio autor viveu. Morrem aos montes e matam outro tanto de pessoas. A cidade empesteada vive momentos terríveis, dolorosos e agônicos.

Na ameaça que a atual pandemia nos provoca chegamos a perceber a falta de importância que dávamos ao que é mais banal. Sair às ruas. Usar o transporte público. Trabalhar, rotineiramente. Bebericar umas cervejas numa calçada. Levar pão para casa. Enfrentar filas. Conversar, sem compromisso, na confusão da feira. Não nos importava. Tudo era comum. Cotidiano. Banal.

Domenico De Masi escreveu na FSP numa edição de Domingo. “No romance de Camus, obra-prima profética de Albert Camus” – diz ele- “a ciência era protagonista, ou seja, o médico Bernardo Rieux, ocupado até o fim, como médico e como homem, de socorrer os contagiados enquanto “o cheiro de morte emburrecia todos os que não matava.”

O querido leitor se lembra de alguma coisa ou de alguém?

E tal como nosso irmão Rieux, continua ele, “estamos presos num limbo entre o pesar e a esperança, no qual temos que aprender que “a peste pode vir e ir embora sem que o coração do homem seja modificado”; que “o bacilo (ou vírus, tanto faz…) da peste não morre nem desaparece nunca, que pode permanecer adormecido por décadas nos móveis e nas roupas, que espera pacientemente nos quartos, nas adegas, nas malas, nos lenços e nos papéis, que talvez chegue o dia em que, infortúnio ou lição aos homens, a peste acordará seus ratos para mandá-los morrer numa cidade feliz.” (Camus)

Desprezamos, diariamente, a banalidade do Bem.

Isso deveria nos mover e nos comover para a denúncia da banalidade do Mal!

Agradeço a vocês, Hannah e Albert.