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A filosofia presente nos ‘Engenheiros do Hawaii’

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A filosofia presente nos ‘Engenheiros do Hawaii’
Ivo Di Camargo Junior é doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela Ufscar

Anos atrás tive a oportunidade de ver de perto, ouvir suas ideias e conhecer

Pessoalmente, com um autógrafo no livro que comprei, a figura de Humberto Gessinger, o líder poético e multi-instrumentista da banda Engenheiros do Hawaii.

Ouvindo-o declarar suas influências musicais e literárias, porque ele ali estava como autor de livros, tirei dentro do tempo possível momentos para ouvir suas músicas e ler seu romance que comprei e identificar algo bem comum dentro de sua produção: uma fina e sofisticada leitura da filosofia. Porque, se observarmos bem suas canções, autores essenciais do existencialismo como Sartre, Camus e Simone de Beauvoir estão presentes nas composições do roqueiro gaúcho, que por muito tempo, liderou a banda Engenheiros do Hawaii.

Em especial,  pode-se notar a presença sartreana em suas letras, onde a ideia da existência precede sempre a essência. Nas composições de Humberto Gessinger, os homens nascem sem uma função que os defina e como são responsáveis por seu próprio destino e escolhas, carregam dentro de si uma angústia sem tamanho. Geram angústia em si próprios.

Quando em 1987 a banda lançou o LP A revolta dos Dândis, um de seus trabalhos mais aclamados e também criticados pela intelligentsia nacional, percebeu-se claramente as preferências da banda pela filosofia de Sartre e Camus. Até uma polêmica foi criada à época porque, alguns críticos, declararam a banda como apologética do fascismo.

Essa acusação de elitismo e fascismo vinha justamente por causa de suas letras bem escritas e intelectualizadas. Humberto Gessinger defendeu-se à época afirmando que os brasileiros tanto entendem de existencialismo quanto de boxe, haja vista que tudo se trata de um produto de consumo, tanto a filosofia quanto um esporte. Veja a fala do compositor divulgada à época:

“Às vezes, a citação não precisa ser entendida. No mundo de hoje não tem diferença entre Albert Camus e Mike Tyson. São dois produtos de consumo. Eu saboreio Camus como saboreio Mike Tyson. A maioria do povo brasileiro entende mais de existencialismo do que de boxe. Cito Camus porque está mais próximo de mim. Acho que as pessoas entendem o que é ‘dândi’, pelo menos tanto quanto eu. A “obra aberta” possibilita que uma música seja entendida em todos os níveis. Os Titãs conseguem isso. Caetano, o mais genial de todos, não consegue. Talvez nem a gente consiga. A nível de “intelectuália” citar Camus é kitsch e demodé. Pra agradar a crítica eu citaria Levi Strauss na baía de Guanabara”.

Partindo para uma leitura bem superficial das letras, percebe-se claramente a filosofia existencialista em letras como Infinita Highway, Terra de Gigantes, Refrão de Bolero (que já analisei em meu blog, em link abaixo) ou mesmo a faixa título do álbum, A revolta dos Dândis. Com a filosofia de Albert Camus,  autor do livro O homem revoltado, há na obra dos Engenheiros do Hawaii uma citação explícita de um capítulo do livro do filósofo francês. “Eu me sinto um estrangeiro, passageiro de algum trem, que não passa por aqui, que não passa de ilusão”.  O mesmo trecho tem clara alusão a outra obra de Albert Camus, O estrangeiro.

A música Infinita Highway vai de encontro, claramente, com a filosofia preferida de Gessinger, o existencialismo. Quando foi gravada, ela possuía mais de 6 minutos de duração, algo considerado fora dos padrões musicais de gravadoras da época, mas que emplacou nas rádios de todo o país, destacando a insegurança de um eu-lírico diante da vida opressora da cidade e a inquietação geral dele perante todo mundo que o cerca.

Se observar bem, Sartre e sua motivação podem ser percebidas no lugar de Camus como influenciador, haja vista que em versos como “A dúvida é o preço da pureza” e “Nós não precisamos saber pra onde vamos, nós só precisamos ir”, há muito mais do existencialismo pessimista em relação a liberdade de Sartre do que o conhecimento já dito de Camus. Inclusive pode ser percebida na letra insinuações sobre o mundo e cenário político vivido pela banda, com jogos de palavras, aliterações, tudo isso elevando ainda mais as letras de Gessinger e companhia, nos Engenheiros do Hawaii,  ao status de poesia cantada.

Um fato quase desconhecido é que, na década passada, a importante revista musical Billboard declarou os Engenheiros do Hawaii como a detentora das músicas mais inteligentes do mundo, desbancando o hipervalorizado e agora detentor do Nobel de literatura, Bob Dylan, e também o fenomenal Freddie Mercury. Isso se deu, a meu ver, talvez pela forma complexa de construção de suas letras que, se comparadas ao universo do rock, soam mesmo diferenciadas e para poucos entendedores.

Outro fato é que estando longe do grande centro “intelectual” brasileiro da época, Rio e São Paulo, eles permitiram-se produzir algo de seu gosto, sem influências de gravadoras mercenárias. Humberto Gessinger, assim como Renato Russo e Cazuza, seus contemporâneos, deve ser considerado um dos maiores letristas e compositores da música nacional, nada devendo a Chico Buarque ou mesmo Tom Jobim.

Cada um no seu modo de ser, construíram e enriqueceram sobremaneira a música do Brasil hoje cada vez mais empobrecida em virtude de onomatopeias sertanejas ou constantes palavrões do mundo do rap funk, sem esquecer a pobreza verbal da música dita “inteligente” como os Shimbalaiês de Maria Gadu, por exemplo. No deserto intelectual que atravessa a música brasileira, ouvir Engenheiros do Hawaii  é um bálsamo, um alento. Vale dispensar um pouco de tempo desta pandemia interminável e, ir ao Youtube desfrutar e conhecer melhor essa banda excepcional.

Referências:

1 – https://filosofices.wordpress.com/2011/06/22/refrao-de-bolero-analise-descompromissada/
2 – http://virgula.uol.com.br/musica/engenheiros-do-hawaii-fatura-pesquisa-mundial-saiba-mais/