Celebração entre diferentes

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Bolsonaro abriu o seu pãozinho: – Carlito, traga o leite condensado. Dim dom, tocou a campanhia: – Mi, abra a porta e vá ver quem está lá, ordenou o imponente comandante.

Eis que na sala, chega pomposamente Luís, não o XV, sim o Inácio, trazendo uma mortadela premium, daquelas que vendem no mercadão. Vestindo uma bermuda florida e uma camiseta esportiva, o setentão com o seu copo térmico de quem joga beach tennis deu um abraço caloroso no capitão e logo começaram a falar de futebol.

Grudado no celular do papito, Carluxo diz que Sérgio mandou um zap e está esperando autorização para entrar no condomínio. – Flávio, larga desse chocolate que você pegou na casa tio Queiroz e vai receber o Doutor.

Com um sapatênis estiloso, Moro, o Sérgio, chegou com uma camisa pólo engomadinha, emulando a voz do Cid Moreira que aprendera (ou tentara aprender) em suas sessões de fonoaudiologia, e deu um boa noite, apesar de estarem ainda no meio da manhã. Todos riram, forçosamente. Trouxe um creme de amendoim, daqueles pastosos, que trouxera de sua última estada nos istaites. Logo, puxou uma cadeira, e se achegou perto do Jairzinho, neoempresário de sucesso e conquistador da galere. O ajudante de ordens do capitão, logo disse que estava vindo uma comitiva, recém-chegada da Cidade-Luz. Era ele, “Cirão da massa”, da família Gomes. Aportou à casa esbravejando, mas trazendo croissants quentinhos. E se juntou aos convivas. Todos festejaram, com muito sertanejo, funk, rock e forró. Fim.

Surreal, não? Certamente uma ficção, que apenas cabe em linhas imaginárias.

Porém, tal qual a historieta acima, poderíamos encontrar dentro de cada uma de nossas famílias, bolsonaros, lulas, moros e ciros também. Nas festas de fim de ano, todos eles conviveram no mesmo ambiente. Somos muitos e diferentes, mas ainda assim formamos um grande núcleo. Tem lugar para o tio do pavê, o avô contador de histórias, o sobrinho rebelde, a tia faladeira, a mãe conciliadora, a prima fada sensata e o pai brutamontes… Há diversidade e nem sempre a animosidade vence, por mais que ela exista. E por qual razão? Existe o amor! Assim como existem o respeito e a tolerância igualmente. Ou deveriam existir. Naquilo que impera a falta de consenso ou convergência, esbanja-se o bom senso de não ferir o outro, de não destruir o antagônico, de não cancelar no primeiro sinal vermelho, em que se prefere recuar ao invés de ganhar uma discussão.

O diálogo é o elemento necessário para construir pontes em tempos de polarização, como disse o prof. John Jonathan Michelon em uma conferência neste ano. Manter conversas, pontos de convergência, focando-se nas similitudes pode ser uma abordagem eficaz para não enfatizar o pomo da desunião. No fundo, pensar e ser diferente não é sinônimo de nutrir inimizade.

Por quais motivos ainda encaramos a política como uma arte de anular e eliminar o adversário? De vencer, não pela comparação de propostas, mas pela desconstrução? Sei que isso faz parte da “arte da guerra”. Mas enquanto vestirmos as eleições como batalhas campais e sangrentas, sairemos feridos. Todos. Divididos. Inconciliadamente manchados, cujas fardas do outro lado não mais cabem no espaço. Nunca mais.

Até quando deixaremos os marqueteiros nos dividirem? Que a estratégia do ódio, da descrença no real, de vilanizar todo aquele que pense diferentemente? Como insistir em acreditar numa mensagem encaminhada via corrente de celular, sem pé nem cabeça, tenha mais valor do que um conjunto de pesquisadores contradizendo? As trevas anticientíficas ganham relevância e os que desmintam são ideologizados, como se a ciência tivesse cor política. E aí da imprensa desdizer algo que não gostaria de ouvir. Triunfo da pós-verdade!

Como defender fidalgamente o político mentiroso, que não está nem aí para o outro? E melhor, para que continuaremos entrincheirados em guerrilhas virtuais quando, na verdade, sabemos (quando necessário) muito bem conviver, tolerar e respeitar os diferentes. A começar, em nossas famílias, em que somos tão distintos e está tudo bem assim mesmo. Que seja assim também na política. Nas eleições. Que reconheçamos as diferenças, mas falemos a linguagem que nos traga unidade, mesmo quando o consenso não for possível, suportemo-nos sem perder a humanidade. Se for possível despolarizar, melhor não acirrar. Deixemos a tutela da controvérsia para o Judiciário, para os candidatos no restrito período eleitoral e não aportemos para a vida, para a convivência dos lares, o que deveria ficar fora, o que não constrói.

No final das contas, somos uma grande família, imperfeita na real, diversa e que quer, por distintas vias (algumas até intoleráveis) atingir um bem comum. É um exercício, ora imaginário, mas que reflete o pensar/sonhar de muitos.

Que o nosso novo ano, novo ciclo, possa ser erigido em relações mais fraternas e dialogadas. Com sensatez e luzes. E coerência também, do pensar e do agir, com esperança.

A paz? Fico com Desmond Tutu: “Se você quer paz, não fale só com seus amigos, mas com seus inimigos também”.