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GOT: Tudo muda, nada muda.

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GOT: Tudo muda, nada muda.

Os produtores de Game of Thrones parecem ter descartado a teoria, querida entre os fãs e ainda possível nos livros, de que o mundo em que vivem os personagens se passa numa história cíclica. Contudo, alguns desses elementos podem ser encontrados na estrutura narrativa, agora que chegou ao seu fim – e, para minha surpresa, esses desfechos são recebidos sob volumosas reclamações da audiência.

O que causa confusão é que o que sempre foi o mais elogiado na série, grosso modo, é como ela era capaz de subverter as expectativas de seu gênero, a fantasia – apresentando o que muitos diziam ser uma versão mais realista e política de um mundo usualmente retratado de maneira absolutamente romântica. Bom, isso tudo já era besteira, para começar. A série não teria pegado, não teria a massa de espectadores que têm, se de fato subvertesse, até o âmago da coisa, essas estruturas que estamos familiarizados e a quais nos apegamos.

Claro, aquele que parecia ser o protagonista morreu na primeira temporada, mas esse é um grau menor em que a coisa pode ser subvertida – mesmo nas primeiras temporadas, mais políticas e se passando num ponto da história em que, realmente, a magia era ainda lenda para os personagens da série, era muito claro quem eram os mocinhos, Starks, e quem eram os vilões, Lannisters – o tão maldito maniqueismo que a série supostamente desconstruía, sempre esteve lá, nas temporadas seguintes muito mais evidente, com uma real batalha entre o fogo e o gelo e a vida e a morte.

Sim, os personagens são muito mais profundos e tem motivações infinitamente mais complexas do que, diga-se, no Senhor dos Anéis ou em Harry Potter, mas ainda assim, para uma obra de aventura, é difícil, alguns diriam impossível, fugir de Homero. A questão é que quando essas inversões de significados com qual GoT flertou são elevados à enésima potência a coisa torna-se ou terror – pense nos soldados do Norte e os Imaculados matando inocentes enquanto os Lannisters protegem a população do fogo – ou comédia – pense nas narrativas históricas do Monty Python.

E bom, não é isso que queremos, não para Game of Thrones, pelo menos. Um pouco de quebra de expectativa, como nas inúmeras histórias de traição e de redenção que a série conta, é legal, e funciona muito bem para, digamos, “aprofundar” o personagem. Já com a quebra completa a coisa não faz sentido nenhum. GoT foi uma série que caminhou nessa linha de maneira elegante, alternando até mesmo entre momentos reais de terror e comédia – gêneros que se dão justamente na inversão completa dos valores, e portanto ridículos por definição.

Porém, sem nunca deixar perder-se, sem nunca de fato dar um mergulho no absurdo. Essa opção narrativa, reiterada pelo retorno às teses iniciais que o desfecho trouxe, somada à sequência de acontecimentos com que se deu o clímax da história, não configuram senão uma metáfora para o próprio propósito da série – que não é desconstrução, mas sim reconstrução do gênero de fantasia.

Fomos apresentados no início a personagens já bem formados, com passados, relações e intenções estabelecidas; presenciamos então, durante seis ou sete temporadas, o desenvolvimento desses personagens, ora através de uma afirmação, mas na maioria das vezes mediante uma negação de suas condições originais – processo esse minuciosamente construído através de recaídas e voltas-por-cima, mas sempre caminhando num mesmo sentido que parece ter uma mensagem semelhante a “eu não sou como vocês pensam que eu sou.”

O que acontece na conclusão é que toda desconstrução cabível dentro das narrativas dos personagens já teve seu tempo de ocorrer – no fim da história já não há muito mais história para ser contada, ora. Contudo, isso não a impede de manter-se fiel a sua essência, invertendo a expectativa, porém agora para sua posição original, numa versão que surge das cinzas da desconstrução que a série promoveu. É isso que Daenerys sempre disse que ia fazer e é isso que a série também fez.

O que foi taxado como um crime ao desenvolvimento dos personagens eu não vejo como senão sua única conclusão possível. Porque é esse o ponto: o tal do ‘character develompent’ já acabou e agora é ‘character conclusion’. E eu arriscaria dizer que a maneira com que estão reconstruindo o gênero que buscaram antagonizar durante a série é quase hegeliano. Fala sério, quem achava que a Daenerys não ia botar fogo em tudo, ou que depois de tudo o Jaime não ia voltar para morrer nos braços da Cersei? Como pode-se acompanhar a obra por oito anos e não enxergar ou até mesmo admirar isso, essa verdade latente e tão resistida pelos personagens, de que são seus demônios o que lhes movem, ainda que muitas vezes não percebam?

A mensagem é que não importa o tamanho da adversidade que nos rodeie, nós somos capazes de superá-la; o que representa o maior impedimento são, no fim, os problemas pessoais, individuais, humanos. Isso pode ser visto tanto na história de personagens específicos, como os já citados Jaime e Daenerys, mas também Arya e Cão, como também pode ser claramente vista na macro-história que a narrativa da própria série – com o mais sobrenatural e insolúvel dos problemas, o Rei da Noite, sendo apenas uma nota de rodapé para o real conflito da série – político. É esse o argumento da série: tudo muda, nada muda; e nossos maiores inimigos sempre vão ser nós mesmos – tanto no plano individual como no global.

Engraçado que até as críticas deram uma volta completa: antes reclamou-se quando Game of Thrones passou a introduzir elementos realmente fantasiosos e pediu-se uma volta da política ao protagonismo; agora reclama-se que toda a trama mística provou-se fumaça e que os acontecimentos finais tenham motivações estritamente políticas. Isso é porque a coisa foi muito bem executada. Isto é, a série conseguiu realizar as negações que se propôs, visto que não seriam dignas do nome se não causassem mesmo, a princípio, repúdio – para então serem encorporadas ao próprio entendimento que se tem da obra, ainda que sejam aparentemente antitéticos aos preceitos. Foi assustador quando a Mulher Vermelha foi bem sucedida num feitiço pela primeira vez; duas temporadas depois já estava subentendido que a magia existe sim nesse mundo – o que era só uma lenda, de um passado distante.

Para os personagens essa lógica se dá terminarem justamente como lhes parecia ser destinado no início da história, um destino que lutaram suas vidas todas para evitar, e que, em alguns casos, tentar lutar contra foi tudo que fizeram em toda sua história. Tyrion, o Lannister renegado, é quem dá uma chance de sobrevivência a Jaime e Cersei, e acaba sendo o único sobrevivente de sua família. O fofo do Verme Cinzento era só uma máquina de matar; o Jon Snow é um bastardo da Patrulha da Noite.

Essas negações de todo o arco que foi construído para os personagens, que era, no seu caso, uma negação de suas condições iniciais, representa um retorno a sua tese, porém agora de uma maneira justificada, e que há, portanto, uma identificação. O interessante não é o Jaime não ser um babaca e aí você simpatizar com ele. Isso é fácil; o que ocorre é que o Jaime sempre foi, como ele mesmo diz, abominável, porém passamos tanto tempo com ele que passamos não só a gostar dele como a enxergar nele qualidades que nem ele vê – e não são esses nossos melhores amigos?

Repito que isso não é fácil de fazer. Na verdade, acredito que pouca coisa tenha sido fácil de realizar nessas últimas duas temporadas, tão criticadas – porque havia de se concluir.  Percebe-se essa preocupação no fato das últimas temporadas serem menores; esse retorno à tese que representa a conclusão da série se dá através de uma negação cujo conteúdo é brutal – é uma ruptura completa, porque nega tudo que a série vinha vindo construindo. Por causa disso, a forma de sua apresentação tem de ser igualmente violenta – por isso, os primeiros 60 episódios consagrados como uma desconstrução do gênero de fantasia são totalmente desconstruídos em só 15 episódios. Isso o arco narrativo completo da série; para alguns núcleos específicos da trama ou personagens individuais, essa negação da negação se deu num único episódio ou até mesmo em algumas poucas cenas.

Funciona porque o passo funciona. Não só o processo de antítese dura 60 episódios, como o mundo e o passado dos personagens que forma a tese é já bastante rico e verossímil logo nos primeiro episódio. Isso permite que a síntese aconteça de maneira eficiente, que é rápida, sem se perder o fio da meada ou a relatabilidade. No fim finalíssimo, o que se tem é uma cena brilhante em que os novos governantes discutem temas estritamente de real politik, como a reconstrução de portos e bordéis. Sim, não quebrou-se a roda.

Para concluir, é necessário dar um passo além e negar as negações. Se fosse-se continuar na mesma lógica do desenvolvimento, a série, como os livros, jamais teria fim – não só pela moral dos personagens, que pode sempre ficar invertendo de polaridade, mas também pela história que vai dar base a essas mudanças, coisa que originalmente na série é muito bem construída; no fim não. No fim, não só os personagens param de mudar de ideia como isso é contado de maneira muito mais veloz. Se não fosse assim, a coisa não teria nem porque acabar e se tornaria, de fato, uma novela.

É como o final de Kill Bill – a violência maior torna-se quando após o banho de sangue o clímax chega com uma explosão de fofura. A coisa chega num ponto em que não tem mais para onde ir senão romper não com o conteúdo mas com a forma da obra. Não dá para ficar mais violento do que as primeiras três horas de Kill Bill, por isso o clímax dá um passo além e não é nada violento, pelo contrário, é fofo.

Aos que estão insatisfeitos, e, em alguns casos, realmente bravos, peço que realizem um exercício mental e tentem imaginar como se sentiu Robespierre, o líder da Revolução Francesa, quando se viu, ele próprio, depois de Luís XVI, na guilhotina. É o argumento final de Game of Thrones, é sua síntese, é essa a história de sua personagem principal, Daenerys Targaryen: tudo muda, nada muda. Robespierre deve também ter ficado muito puto de ver a conclusão de sua história, mas eu gosto de pensar que nos últimos segundo de sua vida, quando o carrasco removeu seus curativos, fazendo com que os dentes voassem de sua boca, e ao ver o escárnio e o riso da população parisiense, ele tenha sentido uma pontada de esperança; o espírito humano é irrefreável e os tiranos não passarão.

Game of Thrones mostra como mesmo com tudo mudando, com a destruição completa do estamento anterior, e nada mudando, com a primeiríssima reunião da nova administração sendo voltada para a reconstrução dos bordéis, ainda assim a coisa consegue dar um passo à frente, de um ponto de vista abstrato. Sim, os problemas ainda são os mesmos, e sempre vão ser – mas pelo menos agora eles vivem num parlamentarismo monárquico, e não sob um regime absolutista, ora. E fez isso de maneira sublime, sem trair não só sua tese como sua lógica negacionista.

O que ocorre é que, como dito, para a síntese, é necessário aplicar a negação a ela mesma – o que nos enraivece pois depositamos nossa fé na (de)construção original que a série vinha fazendo na antítese. É exatamente o que ocorre com o clímax de Kill Bill – uma cena recebida, veja bem, com muito mais resistência pelos espectadores. Ou seja, uma cena realmente violenta, e não de violência.

E agora, conosco, é a mesma coisa, e estão todos putos, pensando como a série pôde fazer isso? Se há algo mais Game of Thrones do que isso, não sei o que é.