O locutor

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Todas as partidas e chegadas de ônibus na rodoviária de Cambuçu eram anunciadas por Romildo, o locutor:

– Atenção, senhores passageiros com destino a Araceguá. Partida imediata da plataforma dois. Queiram tomar seus lugares e boa viagem!

Romildo não tinha um vozeirão grave, mas orgulhava-se da dicção perfeita, clara, nítida, impossível de não ser ouvida naquele meio quarteirão ocupado pela rodoviária.

Romildo cumpria seu expediente de 8 horas rigorosamente, sem atrasos, sem faltas e sem nunca ter ficado rouco, graças à infusão de guaco, limão e mel tomada em jejum todas as manhãs.

Enquanto estava trabalhando, tudo corria perfeitamente no pequeno mundo de Romildo, mas era só dar aquela passada no bar, no final de tarde, para começar o seu tormento.

Se a conversa na roda de amigos era futebol, Romildo não tinha chance. Tentava explicar em vão a sua teoria para salvar a Seleção Brasileira de mais um vexame. Queria dizer que faltava padrão de jogo. Nem os vira-latas ao pé da mesa se mexiam. Fora do sistema de som da rodoviária, ninguém ouvia Romildo, o locutor.

Após 15 anos de profissão começaram a aparecer os primeiros sintomas, justamente com o tema futebol. Naquele dia, o locutor da rodoviária pegou todo mundo de surpresa.

– Atenção, senhores passageiros. Se a Seleção fizer pelo menos duas jogadas de linha de fundo a cada partida, nossa chance de ganhar o hexa aumenta em 80%. Embarque imediato para Jirubóia na plataforma 2.

A princípio, a novidade não alterou muito a rotina de partidas e  chegadas na rodoviária. Poucos perceberam o comentário fora de propósito em meio às informações que realmente interessavam a quem estava ali apenas para viajar.

O problema é que quando o diabo está com pressa, não pede licença, e o auge da crise emocional que era prá vir no tempo da pitanga acabou chegando junto com as goiabas. O redemoinho na cabeça do Romildo, o locutor, soprou morno quando amigos da esposa foram fazer uma visita no final de semana. Romildo achava que tinha uma grande teoria sobre a pandemia e começou a explanação bem empolgado até ver que os olhos da melhor amiga de sua mulher começaram a ficar miúdos, avermelhados, até chegar naquele ponto em que a força para manter as pálpebras abertas precisa de um contra apoio que só vem no desafogo de um largo e incontrolável bocejo na cara do interlocutor, no caso, Romildo, o locutor. Ninguém havia prestado a mínima atenção no que ele tinha para dizer. De volta à rodoviária, a vingança.

– Atenção senhores passageiros com destino a Passo Largo. Os de sangue tipo “O” positivo tomem assento nas poltronas atrás do motorista. Os demais tipos sanguíneos acomodem-se nas poltronas do outro lado. A medida é necessária em função da pandemia que estamos enfrentando. Partida em 5 minutos.

A confusão instalou-se na plataforma de embarque porque os tipos sanguíneos, logicamente, não batiam com as numerações das passagens compradas. Por alguma artimanha do acaso os passageiros acabaram se entendendo e a informação que partiu do sistema de som da rodoviária acabou sendo cumprida, afinal quem estava falando era Romildo, o locutor, e ali a voz dele era lei.

Não era o que acontecia na casa do Romildo. Ali, ele se sentia um estrangeiro num país de língua morta. Fazia um bom tempo, desconfiava que a mulher havia adquirido um mecanismo de defesa, uma espécie de gatilho invisível disparado toda vez que ele tentava dizer alguma coisa com sua voz clara e dicção cristalina. Ela não ouvia.

– Você sabe o que eu estava pensando?

– (silêncio)

– Você sabe o que eu estava pensando?

– Hein?

– VOCÊ SABE O QUE EU ESTAVA PENSANDO?

– Por que você está gritando, Romildo?

Só a rotina do sistema de som da rodoviária era capaz de acalmar o espírito do Romildo, cada vez mais atormentado. Ali sim ele se fazia ouvir. Porém, com a mente possuída pelo transtorno, ele resolveu entrar no mundo da política.

– Atenção, senhores passageiros! Neste momento de pandemia, a cidade não precisa um campo de golfe em nosso parque municipal.

Está faltando assistência aos moradores das comunidades carentes de Cambuçu. O embarque para a capital está previsto para às17 horas na plataforma 1.

Aí ele conheceu a dor de uma advertência por escrito e a suspensão de um dia de trabalho. Mas não se deu por vencido. Voltou com toda a energia de seus pulmões. Romildo, o locutor, rompeu com a mulher, deixou de encontrar os amigos no bar e decidiu nunca mais sofrer com a falta de atenção das pessoas. Aumentou o volume do sistema de som da rodoviária e avisou:

– Atenção, senhores passageiros sem destino! Hoje vocês vão ter que me ouvir. Eu vou contar tudo o que acontece em Cambuçu! Embarque imediato para as denúncias que eu vou fazer agora.

Saiu carregado pelos seguranças da rodoviária, perdeu o emprego de 15 anos, abandonou o lar e hoje vive nas ruas de Cambuçu. Trocou o sistema de som da rodoviária por um cone de trânsito para amplificar a voz clara e a dicção perfeita. Segue anunciando partidas e chegadas, denunciando as barbaridades da política e, hoje, ninguém mais ouve Romildo, o locutor.