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O pai, aqui, sou eu!

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Meu pai não tinha um fio de cabelo branco quando o enterramos numa tarde chuvosa de novembro. Faz muito tempo. Hoje, me vejo grisalho diante do espelho e sinto a estranheza de já ser bem mais velho que meu pai.

Não consigo definir se gosto de imaginar a cena em que estaríamos juntos novamente, ele com a idade em que deixou a vida e eu como sou hoje. Após o jantar de sábado, permaneceria à mesa com meu pai mais jovem para uma conversa sobre política. Ele na cabeceira, brincando minutos a fio com o cigarro, batendo suavemente a ponta e depois o filtro contra a madeira, até se esquecer de acender. E eu, com mais rugas no rosto do que ele, tendo que ouvir os argumentos e provocações de quem viveu menos e que supostamente, nesta condição ficcional, sairia na manhã seguinte de domingo para jogar bola, coisa que não faço mais. Hoje, o pai sou eu.

Figura misteriosa esta a quem se atribui a missão mitológica de empurrar o filho para o mundo, tirá-lo do calor do seio materno. Pablo Neruda ouviu pela vida afora o ranger das tábuas do assoalho por onde o pai passava, como uma demarcação de território, um sinal de aviso no gemido da madeira. O pai de Carlos Heitor Cony foi retratado em “Quase Memória” como um sujeito alheio à concretude da dura vida de trabalho e família, um homem capaz de flanar sobre questões éticas e morais, porém sem perder a ternura na elaboração de uma enigmática encomenda endereçada ao filho, com um nó mágico no pacote que somente ele – o pai – seria capaz de executar.

Ó, pandemia! O pai está em crise vendo os filhos adolescerem dentro de casa, longe dos amigos, das suas namoradas, dos seus namorados, distantes do futebol, do basquete, da sessão de cinema. O pai está em crise porque uma força muito mais poderosa o impede de empurrar seus rebentos para fora do ninho; a missão não está se cumprindo e confunde a implacável máquina do tempo. Afinal, o pai não precisa ser um enigma para o seus filhos, assim como aconteceu com Neruda e Cony? Não tem que ser ele o contraponto da mãe acolhedora, aquela que protege o ninho e que, por ela, ninguém sairia de casa?

Ó, pandemia! Como no filme “De Volta para o Futuro”, crio um imaginário paradoxo temporal  e posso ver meu pai vivo e envelhecido, perto dos 80, isolado de mim e de seus netos para se proteger da contaminação que o ronda como a qualquer idoso. Tenho perguntas sobre suas comorbidades, se sofre do coração ou diabetes. Se o parodoxo se mantiver por mais alguns instantes poderei saber a que herança genética nefasta estarei sujeito; descobrirei quais serão as minhas maiores chances de morte. É só olhar para o holograma de meu velho pai e imaginar que a doença dele também tem boas chances de me acometer em outro futuro.

Ó, pandemia! O paradoxo não passou de um rápido delírio cujo vapor trouxe de volta a imagem jovem do homem que me gerou e morreu sem deixar pistas sobre a sua futura saúde senil. Herdei a incerteza sobre como serei na extrema velhice e do que padecerei. Resta o sentimento vil de considerar a ausência do pai jovem como um trunfo sobre os meus contemporâneos que sofrem distantes e isolados de seus pais idosos, doentes e suscetíveis às terríveis consequências de uma contaminação. Ele, longe e sem cabelos brancos, está livre de tudo isso.

Retrocedo à minha primeira infância e meu pai ainda não chegou aos 30 anos, mas já nos têm, a mim e a outros dois irmãos. É um domingo de manhã e, apesar da sua condição de professor universitário, ele faz uso da experiência de garoto pobre para se misturar com naturalidade a uma laia de rapazes jovens e rudes dispostos a tudo por uma partida de futebol. Um jogo perigoso porque o campinho improvisado ao lado de nossa casa tem dono.  É o Véio da Vaca.  O terreno que lhe pertence é um pouco inclinado, mas a grama é boa, macia, e por isso o Véio da Vaca fica uma fera quando pega a pelada em pleno andamento. O jogo de bola é uma ameaça à boa alimentaçào da vaquinha, estraga o pasto, assusta o animal e o leite de suas tetas some. O Véio chega esparramando tudo e botando todos pra correr, numa cena que parece até fazer parte da diversão dos jogadores: vamos ver até quando conseguimos jogar antes da chegada do Véio?

Cansado das chacotas e da falta de respeito, chega um domingo em que o Véio da Vaca perde a paciência. Depois de acabar com o jogo, decide falar com os pais de cada um dos rapazes insolentes que insistem em jogar no campo da vaquinha. Meu pai entra em casa suado,  sem camisa, mais ofegante pela fuga do que pela partida. Mal tem tempo de tomar um copo dágua quando a campainha toca. Parece que o Véio resolvera começar a reprimenda pela nossa casa. Meu pai mesmo atende já sabendo o que o espera:

– Bom dia, meu jovem. Preciso falar com o seu pai – diz o Véio.
– O problema é que o pai, aqui, sou eu – responde o zagueiro mais duro da rua Silva Jardim.

O Véio da Vaca sai resmungando alguma coisa antes de bater na próxima casa a procura de um pai como ele próprio, mais velho, mal-humorado e responsável. O que seria das futuras gerações?  – pensa o Véio – imaginando o dia em que os pais não deixariam seu filhos soltos por aí  e os manteriam bem guardados, dentro de casa.