O espetáculo não está na consagração, mas na queda. O mundo já não assiste à ascensão de um artista com o mesmo fascínio que reserva à sua destruição. Celebramos o talento com uma mão e, com a outra, preparamos o golpe que irá derrubá-lo. Karla Sofía Gascón, que deveria estar no centro das atenções por sua atuação monumental em “Emilia Pérez”, agora é o nome mais recente a ser lançado na arena pública. A atriz não encara apenas a competição pelo Oscar, mas algo ainda mais feroz: a fome insaciável de um público que exige sangue, desculpas e sacrifícios.
Não há piedade. Não há contexto. Há apenas a ilusão de um tribunal onde o passado é um crime sem prescrição e a redenção, um direito inexistente. Gascón, que subiu ao palco em Cannes para se tornar a primeira mulher trans a vencer a Palma de Ouro de Melhor Atriz, não teve tempo de desfrutar do triunfo antes que mãos invisíveis começassem a cavar em sua história, buscando algo para invalidá-la. E, como sempre acontece, encontraram.
O que importa se suas palavras já foram ditas há anos? O que importa se a pessoa que ela é hoje não se encaixa mais na versão que agora resgatam para puni-la? O espetáculo da destruição precisa seguir. A comoção precisa ser substituída pela indignação. O talento, pela culpa. O próprio “Emilia Pérez”, um dos filmes mais elogiados do ano, se torna um detalhe, uma peça de um jogo maior. Porque o verdadeiro enredo da temporada não é a disputa pelo Oscar. É a necessidade de que alguém seja arrastado para fora do palco.
Mas os leões nunca se contentam com uma única vítima. Fernanda Torres, que surge como sua principal concorrente, também foi empurrada ao centro do julgamento. O passado a condena. Um erro de décadas atrás – uma blackface, feita dentro de um contexto que hoje não se sustentaria – se torna um peso inescapável. E então começa a tentativa de ressignificação, a reconstrução pública, o esforço desesperado para sobreviver ao escrutínio. Mas o tribunal digital não quer explicações. Ele quer sacrifícios.
Gascón talvez não estivesse preparada para essa exposição. Talvez nem devesse estar. O mundo que a consagrou como pioneira não a protegeu do vendaval que veio depois. O reconhecimento do talento não a tornou imune ao desgaste de ser símbolo. Quando um artista é transformado em bandeira, seu triunfo deixa de ser apenas seu – e seu erro, por menor que seja, se torna insuportável para aqueles que projetam nele suas próprias convicções.
Mas a grande questão que se impõe não é sobre a culpa ou inocência de Karla Sofía Gascón. É sobre o que nos tornamos. Há um tempo em que julgávamos os artistas pelo que entregavam ao mundo. Hoje, julgamos pelo que já disseram, pelo que já postaram, pelo que talvez já tenham sido. Construímos uma sociedade onde a punição não se limita ao erro, mas se estende até o esgotamento completo da pessoa. Criamos um sistema onde o passado é um espectro que ronda cada passo, onde nenhuma mudança é suficiente, onde todo erro é definitivo.
No Coliseu romano, o espetáculo não era apenas a luta. Era a morte. A multidão aplaudia não o combate, mas o momento em que um homem caía sem vida. O que nos diferencia deles? Nada. Apenas a tecnologia. O linchamento não acontece mais no centro da arena, mas nas redes sociais, nos bastidores da indústria, nos corredores de um Oscar que não quer correr riscos. E enquanto destruímos um nome, já preparamos o próximo.
Mas o que acontece quando os leões não encontram mais vítimas? O que restará quando todos forem engolidos pelo medo, pela autopreservação, pela impossibilidade de errar e seguir em frente? O que sobrará de uma indústria onde o talento não é mais o critério, mas sim a capacidade de sobreviver ao tribunal invisível que se ergueu sobre ela?
“Emilia Pérez” continuará sendo um filme excepcional. A performance de Karla Sofía Gascón permanecerá. O tempo, que varre escândalos e premiações para o esquecimento, sempre resgata as grandes obras. Mas o que diremos quando olharmos para trás e percebermos que, por trás de cada nome apagado, de cada carreira arruinada, há uma escolha que fizemos?
Aplaudimos enquanto os leões destroem. Mas quando os portões se fecharem, quando não houver mais ninguém para jogar na arena, talvez percebamos que os bárbaros sempre fomos nós.