Disputa pelo mercado livre de energia gera até queixa de abuso de poder

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A disputa por novos clientes no mercado livre de energia, desde 1º de janeiro, elevou a temperatura acima do previsto entre as comercializadoras, empresas que disputam esse segmento de negócio. Comercializadoras independentes acusam congêneres ligadas a grupos com distribuidoras de atuarem indevidamente para manter clientes.

A queixa mais comum trata do uso da informação. Para fazer a migração rumo ao mercado livre, o consumidor precisa avisar com antecedência a sua saída para a distribuidora.

Quem faz a notificação para as novas empresas que estão migrando a partir deste ano costuma ser, inclusive, a própria comercializadora que vai atender a esse consumidor no mercado livre, porque ela deve representá-lo no processo. Notificar a distribuidora não é uma opção, é obrigação prevista na regulação.

Algumas distribuidoras, no entanto, estariam avisando a sua comercializadora sobre a migração para que possa oferecer contrapartidas a esse cliente. Assim, o consumidor pode até deixar a distribuidora, mas permaneceria no grupo, agora como cliente da comercializadora.

Advogados ouvidos pela Folha afirmam que, se comprovada, essa prática pode ser enquadrada como abuso de poder de mercado e, inclusive, gerar questionamentos no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), órgão que zela pela livre concorrência.

Existe também uma discussão sobre princípios da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). O entendimento é que distribuidoras devem manter e zelar por informações dos consumidores relacionadas a sua atividade. Não podem repassá-las para outra empresa do mesmo grupo. No entanto, os advogados avisam que isso vai depender do previsto no contrato de cada distribuidora.

A percepção geral, no entanto, é que o problema precisa ser enfrentado o quanto antes, com a criação de regras mais claras para evitar o pior no futuro.

Agora, a queda de braço envolve a conquista de cerca de 200 mil negócios de médio porte que podem fazer a migração. Quando a abertura do mercado livre chegar aos consumidores da baixa tensão, serão milhões de pequenas empresas e residências.

A troca de farpas entre concorrentes contaminou até o clima na Abraceel (Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia). A entidade reúne comercializadoras de todos os matizes e teve de administrar ânimos de associados em campos opostos desse debate.

“O problema existe e estamos tratando dele, sem cerimônias, desde o final do ano passado”, afirma Rodrigo Ferreira, presidente da Abraceel.

“Quem participa da entidade adere a um estatuto, a um código de ética e ao regimento interno. Se a gente perceber que alguém foi por um caminho que fere esses princípios, vamos tomar providências.”

Na tentativa de apurar as reclamações de forma mais organizada, a Abraceel chegou a lançar para os associados a campanha “Fale Aqui”, com o preenchimento de um formulário em que, de forma estruturada, podiam informar problemas na migração.

“Até para evitar fofoca e exagero, a gente colocou uma condicionante na campanha: o associado só podia relatar casos concretos, e para que um caso fosse concreto seria preciso identificar todas as partes envolvidas. A comercializadora, a concessionária de distribuição e sobretudo qual é o consumidor, e o que ocorreu”, explica Ferreira.

Foram 208 notificações de 20 associados sobre diferentes problemas com a migração, 15 deles detalhando abuso de poder de mercado dentro dos critérios exigidos. Exemplo concreto relatado: um cliente mandou email avisando que iria para o mercado livre, e o responsável na distribuidora respondeu, copiando o contato de um colega da comercializadora do grupo dizendo que tinha como oferecer o mesmo serviço.

Os queixosos foram instruídos a se reportarem formalmente à Superintendência de Fiscalização e à Ouvidoria da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), que apura irregularidades.

Segundo Ferreira, a agência já está avaliando os casos, que correm em sigilo. Procurada, a Aneel disse que processos envolvendo denúncias e suas apurações têm um rito, e não há como divulgar impressões preliminares dessas análises.

Dado que os relatos no setor são bem maiores que os captados no “Fale Aqui”, a Abraceel fará uma segunda fase para que a campanha possa recolher dados quantitativos. Os associados poderão relatar problemas, mas sem o nível do detalhamento anterior.

O tema também foi levado à Abradee (Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica). “Nos já tratamos desse tema com os nossos associados e alertamos que, se tem alguém adotando essa prática, ela não é adequada”, afirmou Marcos Madureira, presidente da Abradee.

O empresário Pedro Bittencourt, presidente da GreenAnt, empresa de gestão de energia, tentou fazer o tira-teima. Puxou dados das comercializadoras, incluindo as de grandes grupos, consolidados pela CCEE (Câmara de Compensação de Energia Elétrica). Conseguiu um panorama inicial sobre janeiro, que sinaliza a atividade do mercado na largada da disputa.

A comercializadora da Equatorial, por exemplo, aparece com a captação de 258 unidades de consumo —244, o equivalente a 95% delas, estavam nas áreas em que atuam as distribuidoras do grupo.

No caso da Neoenergia, foram 82 novas unidades. Dessas, 71, ou 87%, nas áreas de concessão de suas distribuidoras. Na Copel, 78% das novas unidades estão na sua área de concessão. Em relação à comercializadora da Energisa, essa proporção foi de 72%. Enel, 67%; CPFL, 61%, EDP, 42%, Cemig, 38%.

“Uma concentração iria no sentido oposto do que se propõe: a abertura de mercado busca a diversificação”, explica Bittencourt, que conhece o mercado livre no Reino Unido, na Austrália e Nova Zelândia.

Como um único mês não é suficiente para retratar o mercado como um todo, a proposta de Bittencourt era seguir com o levantamento por alguns meses, mas a CCEE suspendeu a divulgação das informações.

A entidade explicou à Folha, em nota, que está seguindo o artigo 16-A da Resolução Normativa Aneel nº 1.081/23, segundo o qual o compartilhamento de informações individualizadas dos consumidores só deve ocorrer com a autorização deles. A entidade afirmou que haverá nova consulta pública sobre tema, quando a discussão poderá ser retomada.

Procurada pela reportagem, a assessoria da Aneel explicou que a resolução não determina o sigilo total dos dados, mas a consulta prévia aos consumidores sobre o seu uso.

Seja qual for o argumento, causou mal-estar entre os especialistas que o sigilo impedindo o escrutínio público de uma eventual concentração de mercado tenha ocorrido quando o debate sobre o tema esquentou.

“Péssimo. Beira o autoritarismo. Isso não ajuda o desenvolvimento do setor. Essas informações são de interesse público, e a transparência da informação é a base de qualquer mercado desenvolvido”, afirma Ricardo Lima, há 44 anos no setor de energia, 3 deles como conselheiro na CCEE.

O risco de abuso de poder no mercado livre de energia já foi identificado e tratado em outros países onde ele avançou. Em Portugal, a empresa que tem distribuição de energia só pode entrar na comercialização se criar outra marca.

No Texas, no Estados Unidos, foram impostas tantas condicionantes para quem atua na distribuição entrar na comercialização, com monitoramento e penalidades tão rigorosos, que as empresas com distribuição simplesmente optaram por não participar do outro negócio.

GRUPOS AFIRMAM PRESERVAR DADOS DOS CLIENTES COMO PREVISTO NA REGULAÇÃO

Todas as empresas que responderam à Folha destacaram em nota que seguem rigorosamente a legislação de privacidade dos dados, como previsto na regulamentação, e que distribuidoras e a comercializadora do grupo não compartilham informações para obter vantagens.

O grupo Equatorial destacou ainda que há um esforço de atuação nas suas áreas de atuação. “A estratégia de negócio, a comercializadora do grupo trabalha prioritariamente nas áreas de distribuição do grupo com eventos, campanhas de marketing, entre outras ações, devido à força natural de vendas junto a clientes interessados em migrar para o mercado livre, bem como a familiaridade com a marca.”

A Neoenergia afirmou que o mercado está muito competitivo, o que impede uma concentração, e disse não reconhecer o percentual do levantamento.

“Em janeiro deste ano, do total de clientes que migraram para o mercado livre nas áreas de concessão das distribuidoras da Neoenergia, apenas 13% foram para a comercializadora do grupo, o que demonstra que há um ambiente competitivo para todos os agentes”, afirmou a nota. A empresa disse que não apresentaria os números do seu levantamento por considerá-los estratégicos.

A Copel detalhou que cumpre tanto a Lei Geral de Proteção de Dados quanto a Resolução 1.000/2021, da Aneel que trata da preservação de dados de clientes.

A Energisa apresentou ainda dados mais amplos. “Dos consumidores das áreas de concessão do grupo que já migraram para o mercado varejista, de janeiro a abril de 2024, cerca de 80% migraram para comercializadoras concorrentes, o que comprova que não há favorecimento.”

A Enel reforçou que alguns clientes de distribuição migraram para o mercado livre com sua comercializadora, mas afirmou que o movimento é o reconhecimento da solidez do grupo e da sua liderança na oferta de energia renovável.

Já a Cemig afirmou que é líder do mercado livre desde a sua criação e que oferece, inclusive, mecanismos para permitir maior transparência e agilidade no processo de migração dos clientes para o mercado livre de energia, independentemente da opção.

A CPFL Energia disse que seu braço de comercialização atua há mais de 20 anos de forma própria e independente e tem o reconhecimento dos clientes. A EDP não respondeu até a publicação deste texto.

ENTENDA O MERCADO LIVRE

– O mercado de energia no Brasil tem dois ambientes, o ACR (Ambiente de Contratação Regulada), onde estão ligados os consumidores cativos, atendidos por distribuidoras, e o ACL (Ambiente de Contratação Livre), em que os consumidores têm liberdade para escolher de quem comprar energia, qual energia comprar, e também negociar preço

– Até o ano passado, só podiam estar no mercado livre os maiores consumidores do grupo A, de alta e média tensão (A1, A2 e A3), com conta de luz acima de R$ 140 mil e consumo maior que 500 kW (kilowatts)

– A partir de 1º de janeiro deste ano, o mercado livre foi aberto às demais empresas do grupo A, enquadradas como A4, com conta de luz acima de R$ 10 mil e demanda inferior a 500 kW. A mudança está regulamentada na Portaria 50, de 2022, do MME (Ministério de Minas e Energia)

– Essas empresas de porte médio não compram energia diretamente. São representadas por um agente varejista. Hoje, atuam no país 529 comercializadoras e 113 comercializadoras varejistas

– O organismo que reúne os integrantes do mercado e acompanha as transações e o cumprimento dos contratos é CCEE (Câmara de Compensação de Energia Elétrica)

ALEXA SALOMÃO / Folhapress

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