PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Um grupo de rappers lança uma música em oposição ao candidato da extrema direita nas eleições. Em 2002, foi dessa forma com que artistas do hip hop francês se manifestaram contra o presidenciável Jean-Marie Le Pen, então líder do antigo FN, o Front National, hoje RN.
Na última segunda, outro grupo de rappers lançou mão da mesma arma, desta vez endereçada a Jordan Bardella, herdeiro político de Le Pen. As cenas se assemelham, mas os cenários são diferentes –e pintam um complexo e atual retrato da França.
“Em 2002, houve um movimento de barragem contra Le Pen, que futuramente resultou na criação da associação Hip Hop Cidadão”, explica Julien Cholewa, especialista em rap francês e diretor do La Place, centro cultural dedicado ao hip hop, situado no centro de Paris. “Agora, quase 20 anos depois, a gente se encontra mais ou menos na mesma situação, de forma até mais acentuada.”
Fazendo frente ao RN, prestes a se tornar maioria no congresso francês, a música “No Pasarán” juntou rappers como o veterano Seth Gueko, ícone do rap dos anos 2000, e o jovem Kerchak, nome em ascensão de um subgênero conhecido como jersey. Na letra, aquele diz que a França “se tornou um lar de fascistas”, enquanto este ataca francamente Bardella.
As palavras de Kerchak, Gueko e outros rappers pautaram os telediários franceses com apresentadores assustados. Já mirando as eleições presidenciais de 2027, Marine Le Pen afirmou que vai recorrer à Justiça contra os artistas envolvidos na música de protesto.
Não será a primeira vez. Desde os anos 1990, rap e política franceses travam batalhas de canetas e canetadas, com artistas e políticos de todo o espectro flanqueando posições.
A primeira grande demonstração de força política da extrema direita na atual república francesa se dá em 2002, quando Jean-Marie Le Pen chega ao segundo turno das eleições para presidente. Foi também ali o último ato da era de ouro do rap francês, a compilação “Sachons Dire Non”, ou “saibamos dizer não”, que juntou ícones dos anos 1990 com uma agenda alinhada à esquerda política.
O pleito de Le Pen motivou o coletivo improvisado de rappers a sair com a música “La Lutte Est en Marche”, ou “a luta está em marcha”. Nomes como Sniper, dono de um dos maiores sucessos do rap francês, a faixa “Gravé dans la Roche”, rimam: “Frente a referências a Hitler, não podemos nos calar”. A artista de R&B Wallen canta: “Eu já tenho idade para votar”, chamando os mais jovens às urnas.
A década de então assistiu à persistência do FN na política francesa e ao crepúsculo dos rappers que emergiram das periferias, os “banlieues”, pautando a conversa cultural do país. A chegada da internet desestabilizou o hip hop na França, erodindo a imprensa especializada e a frágil rede de selos e gravadoras. O rap se voltou ao underground e, à sua maneira, também resistiu.
O cenário só mudaria em meados dos anos 2010. De vilã, a internet passou a ser aliada: fomentou cenas locais, facilitou a produção e o compartilhamento de música, acelerou o contato entre o rap da França e o rap dos Estados Unidos e fortaleceu as pontes da diáspora de países como Marrocos e Congo, onde línguas locais influenciam o atual francês falado entre jovens de cidades como Paris e Marseille.
De acordo com uma pesquisa recente da Sacem, associação que gerencia os direitos autorais de música na França, oito em cada dez jovens franceses ouvem rap.
Especialistas afirmam que o rap vive hoje uma nova era de ouro. Tamanha fertilidade faz uma única música de protesto contra o FN parecer até pouco –mas há sentido.
Entre as dez músicas mais ouvidas na França em 2023, sete entram no guarda-chuva do hip hop –as outras três são músicas de artistas internacionais. Nenhum dos rappers listados nas paradas se manifestou publicamente no segundo turno das eleições legislativas de 2024.
Cantora de maior sucesso da França e representante da ala mais pop do país a beber do hip hop, a franco-malinesa Aya Nakamura foi a única entre os grandes a vir a público. Na última terça, ela postou nas redes sociais: “Neste domingo vamos votar, e contra o único extremo que existe, porque só há um”.
Nakamura foi cotada para cantar na abertura das Olimpíadas de Paris, expectativa que deixou Emmanuel Macron atabalhoado e Le Pen enfurecida.
“Hoje, há várias tendências diferentes no hip hop. Há uma tendência em que os artistas são mais militantes, engajados em algumas questões, e tem outras formas de rap que não falam sobre essas questões, mas mesmo esse tipo de rap deixa transparecer a discriminação e as dificuldades pelas quais passa a população”, afirma Cholewa.
Nessa plataforma vasta que é o hip hop francês, há muito que artistas deixaram de representar um imaginário estereotipado e intelectualizado de periferia. Rappers franceses são tão diversos quanto é pujante o hip hop do país, algo que o sociólogo Karim Hammou chama de “crepúsculo de um mito”.
É nesse sentido que o rap e a esquerda do país derrapam ou mesmo distam um do outro. “Hoje, a sociedade como um todo está descontente com a política, e o rap não escapa disso”, explica Cholewa.
Com o disco “Jefe”, de 2023, o rapper da periferia parisiense Ninho passeia entre a egotrip e a autobiografia do anti-herói. Emergindo de Marseille, o rapper Jul se tornou a principal figura do hip hop rimando sobre o dia a dia na cidade praiana. Ambos ocupam o topo das paradas do país, lugares onde o progressismo universalista da esquerda francesa virou progresso dos meus e dos nossos.
Esse descompasso entre hip hop e esquerda política se assemelha ao caso brasileiro, em que rap, na forma do trap, e funk se popularizam ao passo que a direita disputa seus principais atores –é o caso de Ricardo Nunes posando em fotos ao lado do presidente da gravadora de funk GR6, Rodrigo Oliveira.
O último comício do Nouveau Front Populaire, coligação de esquerda que disputa as eleições contra o FN, é outra situação que fez ecos ao Brasil na França. Não pelo fato de ter tido no púlpito o ex-jogador brasileiro Raí –que clamou o povo na Place de la République. Mas, sim, por ter confiado a um rapper as palavras mais fortes do dia.
“Não vamos deixar essa bandeira cair nas mãos dos fascistas”, disse o rapper Prince Wally, com o pavilhão francês em punho. Em 2018, sobre o palco do então candidato Haddad, coube a Mano Brown dizer: “Tem uma multidão que está aqui que precisa ser conquistada.” Dados os resultados do pleito, o último estava certo.
FELIPE MAIA / Folhapress