RECIFE, PE (FOLHAPRESS) – Sob o sol de 31 graus , dezenas de pessoas dançam em círculo ao ritmo da bateria de maracatu em uma praça no centro de Recife.
“Uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor”, elas cantam, repetindo o verso que imortalizou Chico Science no imaginário da cidade. No meio da ciranda, um messias tira metros e mais metros de tecido de dentro de um imenso saco de pano colocado no chão.
Ernesto Neto, vestido de branco, sandália de couro estilo Jesus Cristo, passa aos poucos o interminável tecido para os integrantes daquela roda viva. São 47 metros de chita e “voile” crochetados em forma de trama que, quando esticada ao ser segurada por todos, lembra uma cobra em movimento.
“A serpente é a linha. E a linha, meu amigo, é tudo na vida. É o caminho, o andar, a linha do pensamento, a raiz de uma árvore, a linha do desenho. É a própria linha do crochê”, diz o artista.
Conhecido no circuito internacional de museus e bienais por suas esculturas têxteis de grandes proporções que envolvem a participação do público, Neto inaugura neste sábado sua nova obra, “CapiDançaBaribéNois”, uma instalação que ocupa a totalidade do novo pavilhão expositivo da Oficina Francisco Brennand, em Recife, e da qual a imensa trama de crochê faz parte -ela fica suspensa a oito metros de altura, recheada com 170 quilos de folhas secas.
Antes de ser armada, a rede saiu do Marco Zero, o ponto onde a capital pernambucana começou, e atravessou a cidade de barco pelo rio Capibaribe. Uma bandeira hasteada numa vara de bambu na embarcação dizia “rios limpos, amor, vida e equidade social”. Depois de percorrer vinte quilômetros durante uma hora e meia, o barco aportou às margens da Oficina Brennand.
Lá, a trama foi novamente desenrolada pelo artista e recepcionada pelo corpo de baile com maracatu e rezas, para ser finalmente carregada em procissão até o pavilhão onde é mostrada.
No centro do espaço expositivo, Neto tirou uma lajota “para fazer uma conexão da galeria com a terra mãe”, ele diz, e plantou uma muda de árvore que colheu na nascente do rio Capibaribe. No final da exposição, a planta será transportada para os jardins da Oficina Brennand.
“Isso aqui é uma grande festa. As festas são uma coisa muito importante na nossa sociedade e nas sociedades indígenas e afro”, afirma o artista, copo de cerveja na mão, ao comentar os rituais que antecederam a montagem da obra, que ele chama de “escultura-procissão”.
Celebrações são ritos coletivos, e a junção de pessoas interessa ao artista, seja nas rodas de batucada semanais das quais ele participa na orla carioca, seja em seu trabalho.
Ele aprendeu a fazer crochê na casa de sua vó, no início dos anos 1990, depois de adulto e já com as primeiras exposições em andamento. Era um ambiente de coletividade feminina onde também se pintava porcelana e se cozinhava.
A partir daquele momento, sua obra se voltou para as formas orgânicas –Neto passou a fazer grandes esculturas de tecidos translúcidos nas quais o público podia entrar. Ele também começou a pendurar nos espaços expositivos casulos com ervas aromáticas dentro, para estimular os sentidos dos visitantes.
“O pintor tem uma separação da obra através do pincel e da tinta. O escultor é aquele que toca na obra. A mão é mais profunda que o olho nessa coisa de sentir. Quando a gente toca, a gente já se envolve. Envolver as pessoas é parte disso”, diz o artista, acrescentando que sua obra é coletiva desde a feitura a várias mãos no ateliê.
Aos 59 anos e com uma prolífica carreira internacional que inclui passagens na Bienal de Veneza e uma obra adquirida pela MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York, Neto se coloca sem falsa modéstia numa linhagem de artistas que testaram os limites da escultura, como os neoconcretos Lygia Clark e Helio Oiticica -que também envolviam o público em algumas de suas obras- e Tunga. Ele conta também ter aprendido muito com José Resende.
“CapiDançaBaribéNois” é a segunda obra executada pelo escultor na Oficina Brennand mas a primeira exposta no local -a outra foi uma imensa bola de cerâmica no formato do globo terrestre que ele exibiu ano passado no deserto do Qatar.
Como tudo é carregado de simbolismo para o artista, a data em que a visitação do novo trabalho abre para o público, 11 de novembro, marca os exatos 50 anos da fundação da oficina, uma antiga olaria formada por um conjunto de galpões numa reserva florestal que serviu de moradia e ateliê para Francisco Brennand.
Ao referenciar o rio Capibaribe no nome da instalação, o artista faz uma homenagem às aguas que cortam Recife. Clarissa Diniz, uma das responsáveis por conceber a ideia da obra e ajudar em sua realização, conta que o rio trouxe uma tessitura social ao trabalho por envolver as comunidades que habitam as suas margens.
Segundo ela, os barqueiros se recusavam a fazer todo o percurso desejado pelo artista, dado que um trecho passa pela Ilha do Bananal, uma região de tráfico de drogas.
“Foi o limite de entender se o rio é ou não navegável pelos usos e pela sociedades que estão no seu entorno. Quando tem tráfico e tiroteio não dá. Tem corpos boiando no rio, esse tipo de coisa”, afirma Diniz.
Em vez de desistir da ideia, e partindo do princípio de coletividade que guia sua poética, Neto e sua equipe envolveram a comunidade na obra, de modo que foi possível atravessar de barco as águas antes proibidas. Mas não só.
O artista também convidou grafiteiros locais -que encontrou a partir das negociações para a travessia-, para compartilharem o espaço expositivo, numa atitude inédita em seu trabalho. Na parede do fundo do pavilhão, Libélula pintou uma representação dos mangues. Na parede lateral, o coletivo Iputinga Sociocultural desenhou as águas do Capibaribe, perto das quais a cordelista Sula Patrício, do interior de Pernambuco, escreveu versos para o rio.
“O projeto abraçou esse rio social, que se transformou em presença na obra”, diz Diniz.
ERNESTO NETO – CAPIDANÇABARIBÉNOIS
Quando 11/11/2023
Onde Oficina Francisco Brennand – r. Diogo de Vasconcelos, s/n, Recife
Preço R$ 50; R$ 40 para moradores de Recife
Link https://www.instagram.com/oficinafranciscobrennand/
JOÃO PERASSOLO / Folhapress