SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao protagonizar a peça “Gente é Gente?!”, em cartaz no Sesc Vila Mariana, Ailton Graça retorna às suas origens. Tem algo de simbólico em o ator voltar a trabalhar com o diretor Marco Antônio Rodrigues e tanta gente que conheceu no Folias DArte, grupo de teatro fundamental para sua trajetória, logo quando a Globo encerrou seu contrato fixo, como tem feito com a maioria dos artistas.
Quando o Folias começou a buscar o elenco da peça “Babilônia”, que estreou em 2001, Graça queria voltar ao teatro pelas beiradas. Há anos se dedicava principalmente à dança folclórica e ainda não se sentia pronto para voltar à cena. Por isso, ele se estressou quando sua mulher, Kátia Naiane, disse que havia inscrito seu nome para os testes da peça. Mas fez a audição e foi aprovado.
Graça estava em cartaz com a companhia quando tentou um papel menor em “Carandiru”, conquistou Héctor Babenco e acabou interpretando Majestade, um dos personagens principais. Rodrigues reconta a cena de quando Graça foi dar a notícia. “A gente vai ter que cancelar umas sessões, porque eu vou fazer a filmagem lá”, teria dito o ator. “Não tem problema, meu amor, boa sorte. Vou te substituir”, o diretor diz ter respondido. “A Globo não me patrocina.”
Graça disse a Babenco que não sairia de sua peça. “Mas é cinema”, respondeu o cineasta. “Sim, mas é teatro.” Essa foi a tréplica. No fim, o ator só perdeu uma data da temporada, e o gênio do cinema teve que arcar com os custos da noite. “Para não pensarem que o teatro é uma arte menor”, justifica Graça. “É a arte primeira, que deu vazão para todas essas outras plataformas artísticas.”
Durante “Gente é Gente?!”, sua atenção também foi disputada pelo audiovisual. Em meio a gravações para “Volta por Cima”, próxima novela das sete da Globo, não pôde acompanhar de perto a construção do espetáculo, e coube a Naiane, sua companheira também em cena, mantê-lo atualizado de tudo o que estava acontecendo.
A peça foi adaptada por Silvia Viana de “Mann ist Mann”, ou um homem é um homem, texto escrito por Bertold Brecht no entreguerras. Na adaptação, Gesualdo Brilhante, um motorista de aplicativo, é cooptado para substituir um militar que ficou preso num terreiro de Candomblé no original, um monastério e acaba convertido pelo Exército, abrindo mão de sua identidade.
O projeto surgiu durante a pandemia, por causa do bolsonarismo. “Não do Bolsonaro, porque não nos interessa de jeito nenhum chutar cachorro morto”, afirma Rodrigues, que conversou com a reportagem ao lado de Zeca Baleiro, responsável pela trilha sonora da peça.
O artista seguiu o pedido de Rodrigues e encheu a peça de samba, e o diretor trouxe os elementos carnavalescos como uma forma de localizar o teatro de cabaret brechtiano, popular como o seu. Sobrou espaço para tango, ciranda e bolero, tudo apresentado “mezzo ao vivo”, nas palavras de Baleiro, pois parte da trilha foi pré-gravada.
A dupla está afinada quanto às expectativas para a peça. Ambos queriam questionar a situação da identidade e da subjetividade no Brasil e no mundo hoje. “O país ficou dramático, dividido entre bons e maus. Essa separação que também está na esquerda, não só na direita criou uma lacuna em relação à nossa capacidade de imaginar”, afirma Rodrigues.
“Hoje você não pode rir de nada, tem que achar que tudo é muito sério. E não estou falando que isso é da esquerda. O mundo está assim. Bolsonaro riu às pampas quando as pessoas estavam morrendo na pandemia, agora chora porque não pode pegar um avião.”
Assumidamente à esquerda do espectro político, ambos são críticos ao policiamento do que é certo ou errado que acontece em parte do campo. “Tudo tem um modo de agir, se você não agir conforme, você está ferrado. Não é só cancelamento. É um grande guarda-chuva de bom-mocismo”, diz Rodrigues.
Somando-se a isso, a dupla vê como parte do problema a tendência atual à literalidade, que acredita resultar, em partes, de uma crise geral no repertório das pessoas, intensificada pelo surgimento de algoritmos que distribuem conteúdos para nichos específicos, limitando a diversidade do que cada um consome, e também de um ativismo exacerbado.
“A gente não é contra o politicamente correto. Tem coisas que são urgentíssimas”, diz Baleiro. “Se negarmos que certas causas sexuais, raciais e de gênero são urgentes de se discutir, estaríamos sendo irresponsáveis e não acompanhando o tempo em que vivemos. O problema é como fazer disso um discurso que não mate a subjetividade da arte, a provocação.”
Para isso, apostam na metáfora e todas as suas consequências, diz Rodrigues, como a parábola, a ironia e o humor. “A função do teatro é revelar a estrutura e produzir angústia”, afirma o diretor. “Se a nossa angústia for legítima, ela vai ter algum efeito sobre você. Se não for, o que eu posso fazer?”
“O espetáculo não é panfletário, mas pinçou algo muito importante da vida e transformou nessa tragicomédia”, acrescenta Graça, que relaciona Gesualdo, seu personagem, com o bolsonarismo e a transformação na identidade das pessoas. “Muita gente que está à margem, à beira da miséria, está vestindo uma camisa verde e amarela e indo para a avenida.”
Ele chama a atenção também para o trabalho “uberizado” de Gesualdo. Para ele, hoje todo mundo se acha empreendedor, e as pessoas passam a nutrir ódio contra quem tem carteira registrada. “Eles não têm ideia das conquistas que foram feitas do ponto de vista do trabalho, de uma luta que não é de agora”, afirma. “Eu sou feliz por esse tempo todo ter sido registrado na Globo. Fui CLT. Dou graças a Deus.”
Teatro, audiovisual e atividade política disputam a atenção de Graça nessa nova fase fora da Globo. A saída o liberta para trabalhos fora do selo Globofilmes, mas seu grande projeto é a Lavapés Pirata Negro, escola de samba que ele preside desde 2019.
O ator articula com vereadores e deputados para conseguir uma casa própria para a escola. Seu plano é transformá-la num espaço de formação, dedicado a discutir as pautas de pessoas pretas e marginalizadas, com aulas de gastronomia, artes e atendimento médico e psicológico.
“É a participação mais ativa da escola como um quilombo cultural urbano. Para outras pessoas, pode parecer uma conquista menor, mas vai ser muito grande para a gente se conseguirmos colocar um pretinho, uma pretinha dentro de uma faculdade, de um lugar onde ele possa ser um grande chefe de cozinha.”
Todos esse grupo que se formou em torno do Folias Darte, que não é oficialmente uma trupe, mas cresceu em torno das mesmas ideias, compartilha dessa vontade de ter na cultura uma forma de interferir no mundo.
“A pessoa tem que sair pensando em transformar a própria vida, o mundo ou em transformar nada, deitar na rede e esperar o fim chegar, mas tem que sair inquieta. Ou sair alegre, esperançosa. Não importa, mas tem que se sentir mexida”, diz Baleiro.
GENTE É GENTE?!
– Quando Até 4 de maio. Qua., às 15h; qui. a sáb., às 21h; dom, às 18h.
– Onde Sesc Vila Mariana – r. Pelotas, 141, São Paulo
– Preço R$ 70,00 (inteira)
– Classificação 16 anos
– Elenco Ailton Graça, Paulo Américo, Kátia Naiane eDagoberto Feliz
– Direção Marco Antonio Rodrigues
– Link: https://www.sescsp.org.br/programacao/gente-e-gente/
DIOGO BACHEGA / Folhapress