SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Hermeto Pascoal guarda boas recordações de São Paulo. Na cidade em que acaba de abrir uma exposição -“Ars Sonora”, no Sesc Bom Retiro- dedicada à sua obra visual, ele descobriu ruídos únicos. Para os seus ouvidos, eram quase música.
“Uma vez, encostei num poste e me deu vontade de fechar os olhos”, diz o músico alagoano. “Fiquei um tempão. Foi uma emoção ouvir tudo ali de uma vez só -o barulho dos carros, sonoro, bonito. Quando abri os olhos, se não seguro no poste eu caía.”
Lenda da música brasileira, Hermeto tem se permitido fazer algo raro, olhar para trás -ou pelo menos deixar que olhem por ele. Acaba de lançar o álbum “Pra Você, Ilza”, com composições escritas meses antes da morte da mulher, Ilza, no ano 2000, depois de 46 anos juntos. Também é tema de um novo livro, “Quebra Tudo! A Arte Livre de Hermeto Pascoal”, sua primeira biografia, além da exposição.
No Sesc Bom Retiro, a imaginação sonora de Hermeto se revela em objetos que não emitem som. São desenhos de partituras feitos em todo tipo de superfície -chapéus, chaleiras, louça, caixas, tênis, revistas, sacolas de supermercado, copos descartáveis, máscaras e até tampas de privada.
É como se o Bruxo, como é conhecido o alagoano, compusesse canções também com o traço e as cores. “Já nasci música, não fiz nada que não tivesse música”, ele diz. “Montar num cavalo e ele sair me guiando, porque eu não via direito, é música. Uma cor, um desenho num papel, tudo isso vale como música. O que escrevo numa bacia de banheiro é tão importante quanto o que escrevo em qualquer papel, porque a música é sagrada.”
A grande maioria das composições exibidas na exposição paulistana, diz Hermeto, não nasceu na forma de som –isto é, as faixas foram escritas diretamente no papel, sem que necessariamente fossem tocadas. Mas não foram feitas apenas para adornar os objetos. “Esqueci de sempre escrever ‘toque, por favor'”, ele diz. “Acham tão bonito que pensam que é só para ver. Mas música é para se tocar.”
Foi o que ele fez com um caderno com centenas de composições, feitas entre o fim de 1999 e o começo de 2000, que gerou “Pra Você, Ilza”. Em fevereiro deste ano, entrou em estúdio acompanhado por seu grupo -André Marques no piano, Jota P no saxofone, Itiberê Zwarg no baixo, Ajurinã Zwarg na bateria e Fábio Pascoal na percussão- para gravar 13 daquelas partituras.
Mais do que simplesmente executar todas as canções, Hermeto e o quinteto criaram a partir do que estava no papel. As composições serviram como ponto de partida, mas os arranjos, viradas, timbres e ritmos das músicas foram criados no calor do momento -como, aliás, tudo o que o artista faz. Se não for espontâneo, para ele, não serve.
Ilza, sua mulher, era conhecida por fazer uma feijoada de sabor sem igual, diz Hermeto. Ela pilotava o fogão com essa premissa. “Você comia a feijoada dela, meu camarada, era impressionante o jeito que ela fazia, o gosto”, diz. “Era uma cozinheira sensacional. Hoje é tudo feito combinado, pega a receita e faz igual. No tempo dela cada um fazia à sua maneira. E ela era criativa.”
Hermeto a conheceu quando os dois eram adolescentes. Tiveram de mentir a idade para se casar. O alagoano tinha deixado o povoado de Olha d’Água, em Lagoa da Canoa, na região de Arapiraca, para tentar a vida no Recife -cidade lembrada em vários títulos de músicas do novo álbum. Começou a trabalhar como músico de rádio, substituindo outro gênio albino da música brasileira, Sivuca.
Desde criança, Hermeto Pascoal tem dificuldade para enxergar, mas foram os olhos que atraíram a mulher. “Ela achava bonito, não abriam, nem fechavam”, ele afirma, e diz que de cara não soube que estava diante da mulher de sua vida. “Premeditar realmente não é o meu negócio, aconteceu tudo bem naturalmente.”
Foi com essa naturalidade peculiar que Hermeto conduziu uma memorável performance ao lado de Elis Regina no Festival de Montreux, na Suíça, há 45 anos. Depois do show com seu grupo, eles apresentaram juntos “Garota de Ipanema”, “Asa Branca” e “Corcovado”. O alagoano martelou o piano com dissonâncias e caminhos melódicos nada óbvios, enquanto ela se virava para acompanhar.
Até hoje se comenta que Hermeto estaria pregando uma peça na cantora. Marco Mazzola, produtor histórico da MPB, reafirmou essa versão dos fatos numa entrevista ao jornal O Globo em 2013.
Mas Hermeto nega. “Nunca acompanhei uma cantora tão musical na minha vida até aquele dia, nem depois”, diz. “Tudo o que fiz de espontaneidade no piano era de acordo com a musicalidade dela. Quem não tinha alcance musical, como algumas pessoas da imprensa, não entendeu. Ela estava curtindo e tendo atenção aos acordes. Foi um namoro eterno, tanto que ela me elogiou depois em entrevista, me chamou de deus.”
No começo daquela década, Hermeto se tornou amigo de outro grande nome da música, Miles Davis. “Quando me viu, foi uma atração”, diz. “Disse ‘vocês me conhecem, quando vou tocar não falo com ninguém, mas alguma coisa me levou até esse cara’. São coisas como essa que me fazem acreditar em Deus.”
A atração foi tanta que o gênio do jazz gravou com Hermeto -e de Hermeto. Três das oito faixas de “Live – Evil”, de 1971, teriam sido compostas pelo alagoano, ainda que no LP original todas elas tenham sido creditadas ao americano. Nas músicas “Little Church”, “Selim” e “Nem um Talvez”, o brasileiro só é citado como instrumentista. Atualmente, no streaming, o alagoano só é creditado como compositor de “Nem um Dia”.
O caso, que já rendeu uma entrevista enfurecida de Edu Lobo, xingando Miles Davis, na TV Globo, ainda hoje gera alguma repercussão. Para Hermeto, o americano, que teria dado a ele o apelido de “crazy albino” -ou “albino louco”-, não é o culpado por sair como o compositor das músicas, mas sim sua equipe.
“Como eu tinha minha amizade com ele, não liguei para isso -e ele também não ligou”, diz Hermeto. “Não tive a intenção de abusar do Miles, nem ele de mim. A amizade era muito grande.”
Hermeto voltou aos Estados Unidos para gravar seu álbum “Slave Mass”, de 1977, e concretizar a ideia de fazer música com porcos. Na ditadura militar, ele chegou a tentar, sem sucesso, “tocar” os animais.
Conseguiu um porco com uma família que o criava “como cachorro”, diz. “O [percussionista] Airto Moreira mexia nele como eu pedia, e o técnico gravava. Era ‘mexe na orelha’. Tocamos o porco todo.”
Aos 87 anos, Hermeto já fez música com tantos animais, objetos, plantas, água e partes do corpo que contabilizar é uma tarefa inglória. Certo, para ele, é que a criatividade está longe de se esgotar. “Quanto mais velho na idade, me sinto mais novo na música.”
LUCAS BRÊDA / Folhapress