SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Um manto do povo Tupinambá, que estava há três séculos em Copenhague e foi cedido pela Dinamarca, desembarcou no Brasil sob sigilo nas últimas semanas. A peça deve integrar o novo acervo do Museu Nacional, destruído por um incêndio há seis anos.
Um dos primeiros povos indígenas que tiveram contato com os europeus na América do Sul, os tupinambás encaram o manto como um artefato sagrado. Ele é usado em rituais por caciques e líderes indígenas, que acreditam que as peças devem estar próximas ao seu povo de origem.
A relíquia tem 1,2 metro de comprimento e é feita de penas vermelhas de pássaros guarás, que estão fixadas em uma trama de fibras naturais. Estava na Dinamarca desde 1689, segundo registros oficiais, sob guarda do Museu Nacional da Dinamarca.
“A chegada do manto ao solo brasileiro tem um significado muito importante e vai fortalecer a luta dos povos indígenas. Essa é uma peça sagrada para o nosso povo, carrega nossa ancestralidade”, afirma Glicéria Jesus da Silva, artista plástica e uma das líderes do povo Tupinambá em Olivença, sul da Bahia.
A doação do manto tupinambá ao Brasil representa o desfecho de uma negociação iniciada há pelo menos dois anos que envolveu o Museu Nacional brasileiro, a Embaixada do Brasil na Dinamarca, o Itamaraty e líderes indígenas brasileiros como Glicéria Tuminambá, Valdelice Tubinambá e Cacique Babau.
O pleito dos tupinambás para o retorno da peça ao Brasil vem desde 2000, quando o manto foi exposto na Mostra do Redescobrimento, em São Paulo. Na época, líderes indígenas defenderam que relíquia não retornasse para o exterior, mas não obtiveram sucesso,
O apelo mais recente foi atendido pela Dinamarca, que anunciou em julho de 2023 que iria doar o manto ao Museu Nacional brasileiro, que tem um histórico de parcerias com os tupinambás. Desde então, foi iniciado o processo de transferência, que envolveu a superação de uma série de obstáculos burocráticos.
A decisão foi tomada em meio a uma onda de devoluções de artefatos históricos a seus países de origem por museus da Europa e dos Estados Unidos. No caso do manto, contudo, a doação não é tratada como uma devolução, já que não se sabe de que forma o artefato foi parar na Europa.
O manto desembarcou no Brasil em sigilo por questões de segurança e em cumprimento a cláusulas do contrato de doação assinado com os dinamarqueses. Procurado pela reportagem na terça-feira (9), o Museu Nacional não confirmou nem negou a chegada da peça ao país.
Após a publicação da reportagem, o Museu Nacional confirmou nesta quinta-feira (11) a chegada do manto tupinambá e informou que vai apresentar a peça nas próximas semanas, em data ainda a ser confirmada, após a adoção de todos os procedimentos para sua conservação.
“Nesse momento, pedimos a compreensão de todos, pois queremos organizar a apresentação do manto para a sociedade, com todo cuidado e respeito aos saberes dos povos indígenas, com quem estamos trabalhando em harmonia e contato direto, através do Ministério dos Povos Indígenas”, informou.
A expectativa é que o manto seja apresentado em um evento no final de agosto, com participação de autoridades e de líderes indígenas. A peça passa atualmente por um processo de desinfestação com uma técnica chamada de anóxia atmosférica, que envolve o artefato em uma espécie de vácuo.
Os tupinambás celebraram a devolução do manto, mas se ressentem de não terem sido convocados pelo Museu Nacional para ter contato com a peça após sua chegada ao Brasil.
“O manto precisa de cuidados religiosos e ainda não conseguimos prestar os rituais do nosso povo para esse ancestral. É uma peça sagrada, não é uma obra de arte”, afirma Glicéria.
Curador das coleções etnográficas do Museu Nacional, o professor João Pacheco de Oliveira afirma que os tupinambás terão acesso ao manto nas próximas semanas para a realização dos devidos rituais, antes da apresentação da peça à sociedade. A ideia é que o artefato seja apresentado em uma grande festa nacional, onde os indígenas e as suas lutas tenham um papel de protagonismo.
O manto tupinambá é considerado peça central na montagem do novo acervo do Museu Nacional, destruído no incêndio que aconteceu em 2018.
A reconstrução das coleções etnográficas será realizada em parceria com os povos indígenas: “Temos que pensar com os olhos do século 21 e a participação indígena é peça fundamental para a reconstrução das coleções”, afirma Oliveira.
A expectativa é que a volta da peça para o Brasil também sirva para fortalecer a luta do povo Tupinambá, que atua em defesa da demarcação da Terra Indígena Tupinambá em Olivença, que abriga 20 aldeias em áreas de Mata Atlântica no sul da Bahia.
A terra tem 47 mil hectares e se estende pelos municípios de Ilhéus, Buerarema, Una e São José da Vitória e abriga cerca de 5.000 indígenas. O processo de demarcação foi iniciado em 2004, após ações de retomada de terras, e desde 2012 aguarda a assinatura da portaria declaratória pelo Ministério da Justiça.
“O processo de restituição do manto tupinambá representa uma chance história e uma janela de oportunidade na luta pelo território do povo Tupinambá”, afirma pesquisadora Daniela Alarcon, doutora em antropologia pelo Museu Nacional.
JOÃO PEDRO PITOMBO / Folhapress