Morre Françoise Hardy, última estrela da canção francesa, aos 80 anos

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Morreu, nesta terça-feira, dia 11, Françoise Hardy, a última estrela da canção francesa, aos 80 anos, que sofria de um câncer na faringe. A informação foi confimada por seu filho, Thomas Duntroc, nas redes sociais.

Hardy estava doente há quase 20 anos, quando recebeu o diagnóstico de um câncer no sistema linfático, se afastando da carreira artística. O câncer na faringe seria descoberto em 2019, dificultando sua vida cotidiana. Em entrevistas, a artista passou a defender a eutanásia.

Mulher de intenso fulgor, a artista derramou a própria beleza na música, na moda e no cinema. Ela encontrou a arte na melancolia, fundindo seu sofrimento numa poética alicerçada em paixões tórridas, amores desastrados e em tentativas desesperadas de recuperar a alegria dos verões à beira-mar.

Autora de “La Question”, Hardy unificou o seu repertório em uma simplicidade estrutural, que conjugava a natureza intimista dos álbuns à linguagem pop. Ela ajudou a virar a “chanson” do avesso, tendo sido uma integrante do movimento iê-iê-iê. Tudo começou numa noite de 1962, quando ela apresentou “Tous les Garçons et les Filles” num canal de notícias, que anunciava o resultado de um referendo sobre o sufrágio universal.

Gravada no disco que levava o nome da autora, lançado naquele mesmo ano, a canção se tornou um fenômeno instantâneo no mundo todo. Em 11 semanas, o vinil vendeu um milhão de exemplares. Afora o sucesso comercial, Hardy lançava ali os fundamentos de seu projeto artístico. “Tous les Garçons et les Filles” tinha o ar naïf, típico do rock iê-iê-iê, que, numa narrativa cinematográfica, contrastava com o seu sentimentalismo poético.

“E os olhos nos olhos/ e a mão na mão/ lá vão eles, apaixonados/ sem medo do amanhã”, diz a letra. A melodia e a descrição criam uma atmosfera solar, que desaparece quando a autora assume a primeira pessoa do singular, tentando fazer parte da cena. “Sim, mas eu estou sozinha/ porque ninguém me ama.”

Nesse contraste, Hardy prenunciou o pessimismo romântico, aprofundado na sequência de sua discografia. Na época, ela captou o desejo dos jovens, que sonhavam em ter um namorinho no portão, como se desfolhassem uma margarida: bem me quer, mal me quer.

Também estabeleceu sua imagem, o corpo magro, os cabelos castanhos e os olhos claros, como um padrão de beleza a ser imitado pelas garotas e fetichizado pelos meninos imberbes.

Hardy alcançaria novamente o êxito comercial com “Temps de l’Amour”, presente no mesmo disco, uma composição de Jacques Dutronc. Nessa faixa, a artista repetia a fórmula do sucesso. Ela vislumbrava uma realidade ideal, onde finalmente encontrava o amor, para depois dizer que tudo não passava de uma lembrança. Na melancolia, o tempo passado se tornava uma fuga do sofrimento.

Era um ideal de “jeunesse perdue”, em que Hardy encontrava a arte na nostalgia. Em seu segundo disco, lançado em 1963 e que também tinha o seu nome, “Le Premier Bonheur du Jour” falava de uma alegria encontrada no vento, no mar ou no canto de um pássaro, não sem deixar no final, um rastro melancólico com a imagem de uma lâmpada apagada.

Filha de uma contadora e de um diretor de uma fábrica de calculadoras, Hardy nasceu em Paris, durante um alerta de bombardeio do exército nazista. Na juventude, estudou em colégios católicos e, no tempo livre, cultivou a sensibilidade dramática, ouvindo canções de Tino Rossi e lendo Alfred de Musset. Na época do vestibular, recebeu seu primeiro violão, passando a escrever poemas que traduziam sua tristeza.

Em 1961, ela se impressionou com o show de Johnny Hallyday no Festival Internacional de Rock, no Palais des Sports, na capital francesa. Por ironia, sua entrada na indústria fonográfica se deu quando a gravadora Vogue procurava uma correspondente feminina para o ídolo do iê-iê-iê francês. Seis anos mais tarde, ela conheceria o ator e cantor Jacques Dutronc, com quem ficaria casada até a década de 1990.

O casal teve um filho, Thomas, que é artista. Embora tenha participado do iê-iê-iê, a música de Hardy foi bem além do rock. A maioria de suas canções se resolveu em voz e violão, bem ao sabor do tempo, que consagrava a bossa nova e o cool jazz. O canto sussurrado de Hardy, longe do virtuosismo de Édith Piaf, ajudou a ditar um padrão para cantoras que surgiriam décadas depois, como a ex-primeira-dama da França Carla Bruni.

Entre 1962 e 1973, Hardy lançou um disco por ano. Nesse período, surgiram canções , como “Mon amie La Rose”, “L’Amitié” e “Ma Jeunesse fout le camp”, culminando naquele álbum extraordinário de 1968 cuja capa é um desenho do rosto da artista.

Ali, estão reunidos os clássicos escritos por Serge Gainsbourg “Comment te dire Adieu” –que reavivou o estilo iê-iê-îe com as rimas “silex/ pyrex” e “prétexte/ kleenex”– e “L’anamour”, além de “À quoi ça sert” e “Parlez-moi de lui”, de Jack Diéval e Michel Rivgauche, e “Message Personnel”, em parceria com Michel Berger.

Nenhuma delas seria tão devastadora quanto “Il n’y a pas d’amour heureux” –não existe amor feliz, em português–, uma sentença pessimista, escrita por Georges Brassens, um dos nomes mais importantes da “chanson”.

Na época, Hardy não era apenas influenciada pela música brasileira. Ela fazia sucesso por aqui, tanto que defendeu “À Quoi Ça Sert”, no 3º Festival Internacional Popular da Canção Popular, no Rio de Janeiro, em 1968, sendo convidada para integrar o júri do evento no ano seguinte. Até a sua produção se tornar escassa, Hardy lançaria outros dois grandes álbuns, ambos de 1971. Primeiro, surgiu “Soleil”, com a canção de mesmo nome e ainda “Fleur de Lune” e “Le Crabe”.

Depois, veio “La Question”, disco em parceria com a musicista brasileira Tuca e que tem o mesmo nome da mais bela canção de amor jamais feita. É aquela que diz “você é o sangue da minha ferida/ você é o fogo da minha queimadura / você é a minha pergunta sem resposta/ meu grito mudo e meu silêncio”. O eu lírico se sente confuso “eu não sei por que eu fico/ em um mar onde me afogo.” Todo estudante de francês sabia cantar “La Question”.

Na moda, Hardy mudou o código de vestimenta de seu tempo, atuando no processo de emancipação feminino. Afinal, seus anos de maior produtividade como compositora coincidiram com uma ebulição feminista na França. Hardy popularizou o uso de minissaias, que deixava o corpo da mulher mais à mostra. O look, que se tornou fenômeno, se completava com as longas botas brancas e uma franjinha no cabelo.

A artista vestia Dior, Yves Saint-Laurent, André Courrèges e foi a mulher escolhida por Paco Rabanne para usar aquele célebre vestido dourado, todo dividido em quadradinhos. A forma geométrica se combinava à elegância discreta da modelo. Ao lado de Jane Birkin e Catherine Deneuve, Hardy mostrou que ser chique é ser simples.

Sua imagem chamava tanta atenção que Hardy se tornou “starlette”. Em 1963, foi Ophélie no filme “Castelos da Suécia”, de Roger Vadim. Fez ainda uma ponta em “O que é que há, gatinha?”, de Woody Allen, e atuou em “Une Balle Au Coeur”, de Jean-Daniel Pollet, e no clássico “Masculino e Feminino”, de Jean-Luc Godard. Entre os longas que usaram sua música como trilha, se destaca “Moonrise Kingdom”, de Wes Anderson.

Na história da música francesa, Hardy se inscreveu nos anos gloriosos da canção, unindo figuras tão distantes quanto Charles Trenet, Barbara, Serge Gainsbourg e Johnny Hallyday. Sua morte significa agora um derradeiro golpe na chanson. Alheio a Dylans e Cohens, esse gênero mostrou, no seio da civilização francesa, a força da poesia cantada, num eterno estudo da obra de Reynaldo Hahn, Debussy, Rimbaud e Mallarmé.

GUSTAVO ZEITEL / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS