SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Alguns dos mais antigos habitantes do atual território brasileiro transformaram ossinhos de uma espécie de preguiça-gigante em adornos corporais, provavelmente fabricando uma espécie de pingente.
A conclusão vem de uma análise dos artefatos feita por paleontólogos e arqueólogos e é uma das evidências mais diretas da interação entre seres humanos e mamíferos gigantes da Era do Gelo já encontradas no Brasil.
Os adornos corporais foram encontrados no abrigo rochoso de Santa Elina, em Mato Grosso.
O local se destaca também pelas datas muito antigas obtidas a partir de fragmentos de carvão e outros resquícios, com idade superior a quase todos os outros sítios arqueológicos do país. Se as datações estiverem corretas, os artefatos foram produzidos por volta de 25 mil anos atrás, durante o chamado Último Máximo Glacial. Grosso modo, trata-se do mais recente pico de frio da Era do Gelo, quando as geleiras que recobriam grandes extensões do hemisfério Norte alcançaram seu auge pela derradeira vez.
As análises detalhadas conduzidas com os objetos estão descritas em artigo recém-publicado na revista especializada britânica Proceedings of the Royal Society B. O trabalho é assinado pelas paleontólogas Mírian Pacheco e Thaís Pansani, da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), e por Águeda Vialou e Denis Vialou, do Museu Nacional de História Natural de Paris, entre outros pesquisadores.
No sítio de Santa Elina, os pesquisadores encontraram milhares de osteodermes (estruturas ósseas da derme, uma das camadas da pele) de uma espécie de preguiça-gigante, a Glossotherium phoenesis, que alcançava mais ou menos o tamanho de um boi atual. As estruturas, que não aparecem nas preguiças atuais, assemelham-se às placas que recobrem os tatus (membros do mesmo grupo do qual as preguiças fazem parte). Sua função ainda não é bem conhecida, mas pode estar relacionada à regulação da temperatura do corpo, diz Pansani.
Três dos osteodermes descobertos no sítio estão modificados de tal maneira que sugeria a intervenção humana. “À primeira vista, eles apresentam uma forma bem sugestiva de pingentes, principalmente devido ao polimento, que em alguns casos muda até a forma do osteoderme, e à localização de orifícios neles”, explicou Pacheco à reportagem. Os orifícios indicavam que os ossinhos poderiam ter sido perfurados intencionalmente e colocados num cordão, por exemplo.
No novo estudo, a equipe usou uma série de métodos de análise da estrutura microscópica dos artefatos, inclusive com a ajuda de aceleradores de partículas na França, para mapear como ocorreram essas modificações nos osteodermes. A principal conclusão é que eles foram cuidadosamente trabalhados com a ajuda de artefatos de pedra (vários dos quais foram encontrados em Santa Elina).
“Também encontramos indícios do uso desses artefatos como possíveis adornos, tais como marcas que sugerem o contato constante dos artefatos com superfícies talvez a pele dos usuários”, conta a paleontóloga. Para validar esses dados, a equipe fez experimentos com outros osteodermes antigos do sítio arqueológico e com osteodermes de tatus atuais, mostrando que o aspecto polido dos artefatos poderia ser produzido, de fato, pela ação humana.
Além disso, o padrão de alterações nos ossinhos indica que eles foram modificados relativamente pouco tempo depois da morte das preguiças, e não quando já tinham se fossilizado. Trata-se, portanto, de uma pista em favor da ideia de que os seres humanos que viviam nas vizinhanças do sítio conviveram com a espécie de mamífero gigante e podem ter abatido aquelas preguiças.
Esse dado é importante porque, embora esteja claro que os brasileiros da Era do Gelo chegaram ao país quando as espécies da chamada megafauna ainda estavam por aqui, são muito raros, por enquanto, os indícios de que eles tenham caçado esses animais.
Vários fatores poderiam explicar isso, segundo Pacheco. “O primeiro é o intemperismo: o fato de ser uma região tropical, a umidade e a vegetação, tudo isso pode prejudicar a preservação dos ossos. Os das preguiças-gigantes de Santa Elina, por exemplo, estão muito friáveis [quebradiços]. Eles chegam a esfarelar com o manuseio. Os osteodermes devem ter se preservado por serem mais resistentes”, pondera ela.
Além disso, a relativa falta de pesquisadores da área no Brasil, bem como a complexidade das análises necessárias para comprovar algo como a caça e o consumo por seres humanos, poderiam ser parte da explicação para a relativa falta de casos confirmados.
Pansani diz que considera confiáveis as datas muito antigas do sítio arqueológico. Nesse caso, a simples convivência dos seres humanos com preguiças-gigantes e outros membros da megafauna da Era do Gelo não seria um sinal de que o Homo sapiens os exterminou rapidamente, uma vez que várias dessas espécies só desaparecem de vez no Brasil por volta de 10 mil anos atrás.
O estudo teve apoio da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), órgão do governo federal.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress