Construção de base no Maranhão faz Brasil ser julgado pela 1ª vez por violar direitos de quilombolas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pela primeira vez na história, o Brasil será julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos pela suspeita de ter violado direitos de quilombolas. O tribunal vai analisar se a construção da base para lançamento de foguetes em Alcântara (MA) afetou as dezenas de comunidades da região.

O julgamento acontece nesta quarta (26) e quinta (27) em Santiago, no Chile. Serão ouvidos representantes do Estado brasileiro e das comunidades envolvidas, além de peritos, para avaliar o que o país tem feito sobre o caso.

Depois da audiência, haverá a abertura de alegações finais escritas e, em seguida, a publicação da sentença pela Corte -não há prazo para que isso aconteça.

Inaugurada em 1983 e construída pela Força Aérea Brasileira, a base é alvo de denúncias por ter removido diversas comunidades quilombolas de suas áreas de origem.

Em 2020, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos -órgao que, assim como a Corte, é vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA)- concluiu que o Estado brasileiro afetou “o patrimônio coletivo de 152 comunidades quilombolas em razão da falta de emissão de títulos de propriedade de suas terras, da instalação de uma base aeroespacial sem a devida consulta e consentimento prévio, da desapropriação de suas terras e territórios e da falta de recursos judiciais para remediar tal situação”.

A comissão recomendou, então, que o Brasil titulasse o território quilombola, indenizasse os atingidos pela base, criasse um fundo de desenvolvimento comunitário e fizesse consultas prévias a comunidade em futuros acordos sobre o caso.

Agora, a Corte analisa se o país cumpriu as orientações da comissão. Em caso de condenação, o órgão vai determinar uma série de ações que o Brasil deverá seguir para reparação das comunidades.

Entre as principais reivindicações dos quilombolas estão a titulação do território -processo que desde 2008 está paralisado-, um pedido público de desculpas do Estado, a indenização às comunidades e o fim da expansão da base. O tribunal pode acatar a todos os pedidos, ou só parte deles.

Especialista em direitos humanos e professora da Fundação Getulio Vargas, Eloísa Machado de Almeida afirma que o país pode sofrer consequências caso seja condenado e não siga as determinações do órgão.

“É sobre quão a sério o Estado leva a proteção aos direitos humanos”, afirma ela. “Se não cumprir a ordem, o Brasil pode até deixar de fazer parte da OEA.”

A OEA é formada pela maioria dos países da América e não tem poderes para obrigar o Brasil a cumprir as determinações da Corte. Mas seguir as decisões é importante para manter o prestígio internacional, afirma Machado de Almeida.

O tribunal analisa casos que já passaram pelo Judiciário interno do país, mas não tiveram uma resolução.

Essa não é a primeira vez que o Brasil é réu na Corte. O Estado já foi condenado, por exemplo, pela investigação do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, pelos crimes contra a guerrilha do Araguaia e pelo caso de trabalho análogo à escravidão da fazenda Brasil Verde, no Pará.

Eduardo Baker, advogado e coordenador da ONG Justiça Global, afirma que é comum que o Estado cumpra apenas parte do que o tribunal determina.

“Diferentemente de uma sentença decretada no judiciário nacional, a Corte impõe vários pontos [a serem cumpridos] numa mesma ação”, afirma Baker. “Medidas mais ‘diretas’, como indenização e cerimônia pública, acontecem com mais facilidade, e relativamente rápido. Já as que exigem mudanças mais amplas são diferentes. O Estado tem mais dificuldade em cumprir.”

Baker cita o caso Ximenes Lopes, primeira condenação brasileira na Corte, em 2006. Uma das ordens da sentença foi a criação de um programa especial para capacitação de atendimento médico a pessoas com transtornos mentais -o que só começou a ser implementado recentemente.

Em caso de condenação, a responsabilidade não é apenas do governo federal. A Corte vai julgar todas as esferas do Estado. Nesse caso, isso inclui também o município de Alcântara e o governo do Maranhão.

O imbróglio sobre a construção da base dura mais de 40 anos. Tudo começou no fim dos anos 1970, quando a ditadura militar começou a planejar a construção.

O local foi escolhido porque a localização de Alcântara, num ponto próximo à linha do Equador, facilita o lançamento de foguetes. Para isso, porém, as diversas comunidades quilombolas que viviam na região foram remanejadas sem serem consultadas.

De acordo com dados da Justiça Global, 312 famílias quilombolas, de 32 povos, foram reassentadas de forma compulsória de 1986 a 1988.

Neste processo, os militares criaram as às chamadas agrovilas, que agrupam diferentes comunidades em uma mesa área, desconsiderando as diferenças culturais entre os povos. Além disso, esses locais foram feitos longe do litoral, apesar de grande parte dos quilombolas viverem da pesca.

Em 1991, o governo Collor aumentou a área da base, o que gerou o temor de novas expulsões entre os quilombolas. Dez anos depois, o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), a Defensoria Pública da União e outras organizações da sociedade civil deram entrada na OEA com acusações contra o Estado brasileiro.

“Nós entendemos que a retirada do CLA [a base] não é mais possível. Mas estamos pedindo que essas atividades espaciais se limitem a atual área da base”, diz Danilo Serejo, assessor jurídico do Mabe. “E mesmo sem expansão do CLA, as comunidades precisam participar do lucro das atividades. A base está num território quilombola.”

Em 2019, a Folha de S.Paulo revelou que o plano mais recente de ampliação -baseado num acordo firmado pela gestão Jair Bolsonaro (PL) com os Estados Unidos- previa a remoção de 350 famílias quilombolas apesar do então ministro Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) afirmar na época que isso não aconteceria.

Responsável pela defesa do governo brasileiro, a Advocacia-Geral da União (AGU) afirma que está atenta à sensibilidade do caso e que a gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quer a solucão do conflito. O órgão afirma ainda que quer contemplar os direitos das comunidades quilombolas e o Programa Espacial Brasileiro (PEB)”.

Já a Força Aérea Brasileira diz que “está trabalhando conjuntamente com as demais instituições envolvidas” para encontrar uma solução “de forma equilibrada”.

MARINA LOURENÇO / Folhapress

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