Filme póstumo de Godard em Cannes faz dupla com documentário sem sal

CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Cannes nunca foi a casa de Jean-Luc Godard nem de uma boa fatia dos provocadores mais ácidos do cinema. Agora, numa edição que tem Ruben Östlund como presidente do júri, o franco-suíço virou motivo de homenagem após sua morte em setembro passado.

Mesmo do além suas imagens voltam para nos cutucar no póstumo “Film Annonce du Film qui N’Existera Jamais: ‘Drôles de Guerres'” –ou, trailer do filme que não existirá, guerras de araque.

Derivações de seus próprios trabalhos não são incomuns: Godard, como muitos cineastas do século passado, dirigiam os trailers de seus trabalhos. Também fez curtas e médias com rascunhos e anotações mentais, como “Scénario du Film ‘Passion'”, e encerrou sua vida com “Oh! Revoir”, vídeo em que fita a câmera e fuma seu habitual charuto, dias antes de recorrer ao suicídio assistido.

Mestre dos trocadilhos, seu adeus é um chamado à revisão. Daí a urgência de rever os 20 minutos desse rascunho de “Drôles de Guerres” a partir do roteiro visual deixado pelo artista.

É algo difícil de descrever, mas que se fia em longos planos das páginas de um caderno –algumas apenas com frases anotadas à mão, recortes de livros e jornais, reproduções de obras de artes, outras com grossas pinceladas de tinta preta e vermelha ou rabiscos que saltam do papel como ideogramas.

Como o título de seu último longa, é um “livro de imagens” apresentado num fluxo misterioso que oferece alguns pontos de contato.

Há referência a uma adaptação do livro “Faux Passeports”, de Charles Plisnier, estrofes de poemas não identificados e frases célebres, como esta de autoria indefinida: “É difícil encontrar um gato preto numa sala escura, principalmente se ele não está lá”. Nunca faltou humor ao clown.

A obra de Plisnier já havia sido sugerida no vídeo “Vrai Faux Passeports”, de 2006, em que Godard julga fotos e trechos de filmes entre bons e maus. Mas as imagens desse trailer parecem mais abstratas: não há tantas citações diretas a filmes, mas curtas filmagens de uma jovem e vozes em off. Uma das conversas parece ser entre o diretor, Nicole Brenez, Fabrice Aragno e Jean-Paul Battaggia, que ajudaram a finalizar o curta.

Se é difícil tatear um sentido preciso ou um novo conjunto temático (a arte abstrata, o cinema como pintura e as citações desapropriadas eram obsessões suas desde sempre), “Drôles de Guerres”, da maneira como nos chega, surpreende pelo trabalho manual do artista.

“A verdadeira condição do homem é pensar com as mãos.” Qual um storyboard, o espectador toca o processo de fazer um filme. As mãos são fundamentais. Basta lembrar da abertura de “Uma Mulher Casada”, de 1964, com as trocas de carícias entre dois amantes; a silhueta de uma mão em frente à TV em “Prénom Carmen”, de 1983; até a mão de “São João Batista” de Da Vinci que abre “Imagem e Palavra”, de 2018. “Só a mão que apaga pode escrever.”

O último supetão é que o curta acaba no meio de uma frase. Mas Godard já se despediu, não há como reclamar com o projecionista. Ao menos, Cannes deu a ele, ainda em vida, o prêmio do júri por “Adeus à Linguagem” em 2014.

Em retrospectiva, parece um prêmio de consolação pela torta que levou na cara em 1985, quando foi apresentar “Detetive” no evento, ou pelas coletivas de imprensa caóticas que não batiam com seu temperamento. Não à toa, foi Veneza quem lhe deu o reconhecimento máximo com o Leão de Ouro para “Prénom Carmen”.

Algumas dessas cenas compõem “Godard par Godard”, o documentário que antecedeu a exibição de “Drôles de Guerres”, feito por Florence Platarets.

À parte ser uma montagem de declarações e entrevistas do próprio, o filme não diz a que veio, e mais parece um trabalho de faculdade incompleto ou algo para uma TV educativa. Além de faltar um olhar crítico sobre o cineasta, não consegue resumir sua dimensão em apenas uma hora.

O filme salta no tempo e ignora fases inteiras (o maoísmo e a parceria com Jean-Pierre Gorin ficam ao léu), ainda que projete o lindo final de “História(s) do Cinema”. Ser didático não é problema, mas quem viu “Godard Cinema” de Cyril Leuthy, exibido no último festival É Tudo Verdade, se sairia melhor na prova.

HENRIQUE ARTUNI / Folhapress

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