Em 1959, o público brasileiro conhecia uma das canções mais espirituosas e provocadoras da nascente Bossa Nova: “Lobo Bobo”, composta por Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli – aniversariante do dia – e gravada por João Gilberto em seu álbum de estreia, “Chega de Saudade”, com arranjos e produção de Antônio Carlos Jobim e Aloysio de Oliveira.
Quase uma vinheta, ocupando pouco mais de um minuto do álbum, “Lobo Bobo” foi uma das primeiras composições da dupla Lyra-Bôscoli, feita meio de brincadeira, a partir do tema de abertura dos clássicos filmesdo “O Gordo e o Magro”, famosa dupla de comediantes do cinema estadunidense.
A música nasceu de uma provocação: depois de uma conversa com André Midani – então diretor comercial da Odeon – Ronaldo Bôscoli ouviu o conselho de que as canções da nova geração precisavam se aproximar do público jovem – assim como faziam Celly e Tony Campello, que surfavam a onda do rock, com letras mais atrevidas e modernas.
Bôscoli levou a ideia a sério e decidiu escrever algo diferente das típicas composições mais leves e sem teor sexual ou sensual da Bossa Nova, que falavam sobre barquinhos, flores e entardeceres. Surgia então “Lobo Bobo”: uma música cheia de malícia, humor e ironia, inspirada na fábula “Chapeuzinho Vermelho”.
O lobo domado por Chapeuzinho
Na canção, o lobo, tradicional símbolo da sedução e da ameaça, é subvertido. A letra reconta a história de Chapeuzinho Vermelho, mas com um tom leve e satírico. O lobo – espertão – que “resolveu jantar alguém” acaba “se estrepando” ao tentar seduzir uma Chapeuzinho moderna, “de maiô”, que não cai em suas armadilhas e segue os conselhos da vovó.
Típico comportamento de um macho alfa que se acha o bonzão e acha que vai se dar bem jogando qualquer tipo de charme na garota e ela vai cair nas suas “garras”. Acontece que – mesmo ainda existindo tipos como esse – já desde aquela época, existem mulheres modernas e donas de si, que não precisam se submeter a certas prepotências machistas de uma sociedade patriarcal.
Um olhar sobre os papéis de gênero
“Lobo Bobo” é mais do que uma fábula moderna. A música antecipa, de forma leve e divertida, uma discussão sobre as relações entre homens e mulheres, o poder feminino e a fragilidade da masculinidade diante da autonomia. Em plena década de 1950 – um Brasil ainda conservador, mas já de olhos voltados para o futuro – a letra propõe uma inversão de papéis: o homem que acreditava dominar o jogo da conquista é vencido pela inteligência e autossuficiência da mulher.
Hoje, mais de 60 anos depois, a canção continua atual justamente por isso. O “Lobo Bobo” é uma figura atemporal: aquele que subestima, que acha que pode “caçar”, mas acaba sendo transformado por uma mulher que sabe o que quer.

Um clássico que atravessa gerações
Além da sátira, há uma camada pessoal: há quem diga que o próprio Bôscoli se enxergava no “Lobo Bobo” da letra, domado pela então namorada, a cantora Nara Leão. O conquistador, símbolo de virilidade, termina “na coleira”, sem o poder de “jantar nunca mais”, como numa auto-zombaria de Ronaldo Bôscoli a si mesmo.
A censura da época obrigou os autores a trocar o verbo “comer” por “jantar”, suavizando o duplo sentido sexual, mas sem eliminar a malícia implícita.
Gravada por nomes como Alaíde Costa (no mesmo ano que João Gilberto), Wilson Simonal, Leila Pinheiro, Carlos Lyra, Emílio Santiago, Ed Motta e Luiz Caldas, “Lobo Bobo” se tornou um clássico da música brasileira.
Sobre Ronaldo Bôscoli
Se não tivesse nos deixado aos 66 anos, em 1994 – vítima de complicações causadas por um câncer de próstata – o compositor, produtor musical e jornalista carioca Ronaldo Bôscoli completaria 97 anos hoje.
Grande parceiro de Roberto Menescal, Bôscoli é sobrinho-bisneto da compositora Chiquinha Gonzaga e primo de Bibi Ferreira, tendo nascido em uma família de artistas e sempre estado no meio musical.
Também frequentou os primeiros encontros da turma da Bossa Nova no apartamento de Nara Leão e, além de clássicos em parceria com Menescal, como – “O Barquinho”; “Você”; “Nós e o Mar”, “Ah, Se Eu Pudesse”; e “Rio”, também é autor de sucessos em parceria com Carlos Lyra, como “Lobo Bobo” e “Saudade Fez Um Samba”,
Ao lado de Luís Carlos Miele, Ronaldo Bôscoli produziu diversos espetáculos, entre eles o primeiro pocket-show apresentado na famosa boate Little Club, e organizou e dirigiu dezenas de shows em boates no lendário Beco das Garrafas, importante point musical carioca.
Ainda ao lado de Miele, Bôscoli trabalhou como produtor musical durante 24 anos, tendo produzido espetáculos de Roberto Carlos e também o programa “O Fino da Bossa”, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, entre 1965 e 1967, que ajudou a projetar nomes como Milton Nascimento e Gilberto Gil.
Foi casado com Elis por cinco anos e com ela teve um filho: o produtor musical João Marcello Bôscoli.



