A Tropicália ou Tropicalismo foi um dos movimentos culturais mais significativos do Brasil, que contemplou e internacionalizou a música, o cinema, as artes plásticas, o teatro e toda a arte brasileira.
O movimento surgiu sob a influência das correntes artísticas da vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira, como o rock e o concretismo, misturando manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais, para criar algo inovador, que interviesse na cena de indústria cultural e de cultura de massas da época. E que representasse uma mudança de parâmetros, que atendesse também aos anseios da juventude da época.
Em 1967, grandes nomes da música popular brasileira – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Torquato Neto, Rogério Duprat, Capinan, Tom Zée Os Mutantes – iniciaram o chamado Movimento Tropicalista, movimento de contracultura, que transcendeu tudo o que já havia em termos de produção artística no Brasil.
Hoje, vamos entender a música da Tropicália por meio de 5 discos essenciais da época do movimento.
1 – Caetano Veloso (1968)
Em janeiro de 1968, Caetano Veloso lançou seu primeiro LP individual, que levou o seu nome. Antes disso, ele lançou seu álbum de estreia, “Domingo“, em parceria com Gal Costa, em 1967.
É neste disco de 68 que Caetano apresenta a canção “Tropicália”, cantando o verso: “Eu organizo o movimento”, referindo-se ao Tropicalismo. Na música, ele introduz um pouco do que seria a Tropicália, movimento do qual ele e Gilberto Gil foram os encabeçadores.
O álbum também conta com a canção que foi praticamente a inauguração do Movimento Tropicalista no Brasil, “Alegria, Alegria”, que Caetano apresentou no ano anterior, no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record.
Caetano, em parte inspirado pelo sucesso de “A Banda”, de Chico Buarque, que havia vencido o festival do ano anterior, quis compor uma marcha, assim como a canção de Chico.
Ao mesmo tempo, ele queria que fosse uma música contemporânea, pop, lidando com elementos da cultura de massa da época. A letra possui uma estrutura cinematográfica: conforme definiu Décio Pignatari, trata-se de uma “letra-câmera-na-mão”, citando o mote do Cinema Novo, também grande influência de Caetano.
Como a ideia do arranjo incluía guitarras elétricas, Caetano convidou o grupo argentino radicado em São Paulo Beat Boys para participar da música, que teve o arranjo influenciado pelo trabalho dos Beatles.
Por conta da introdução das guitarras elétricas, a apresentação chocou os chamados “tradicionalistas” da música popular brasileira, que classificavam a influência do rock como alienação cultural, o que também foi sentido por Gilberto Gil quando apresentou “Domingo no Parque” (música que está no próximo disco da nossa lista!), no mesmo festival.
Apesar da rejeição inicial, a música acabou conquistando a maior parte da platéia, ficou em quarto lugar na premiação final e transformou Caetano em ídolo de uma geração.
Outra canção importantíssima desta fase é uma composição de Gil e Capinan, gravada originalmente por Caetano Veloso neste álbum é “Soy loco por ti, América”.
2 – Gilberto Gil (1968)
Logo em seguida do lançamento de Caetano, foi a vez do seu companheiro à frente da Tropicália lançar o seu álbum mais importante desta fase: “Gilberto Gil”, de maio de 1968.
É neste disco que Gil inclui pela primeira vez a sua canção “Domingo no Parque”, que citamos ali em cima, um marco na história do Tropicalismo. Com a canção, se apresentando ao lado do trio Os Mutantes – formado por Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias – o baiano conquistou o segundo lugar (e o prêmio de melhor arranjo) no Festival de Música Brasileira de 1967.
A canção é um verdadeiro retrato das influências Tropicalistas: Gil queria, segundo ele: “Montar algo diferente, partindo de elementos regionais, baianos, de usar um toque de berimbau, de roda de capoeira, como em uma cantiga folclórica”, segundo conta em seu site oficial. “A canção nasceu, portanto, da vontade de mimetizar o canto folk e de representar os arquétipos da música de capoeira com dados exclusivos, específicos: com um romance desse, essa história mexicana. Está tudo casado.”
Com arranjos de Rogério Duprat (que produziu também o álbum “Caetano Veloso”) e participação dos Mutantes, este é o segundo disco da carreira de Gilberto Gil. O primeiro, “Louvação“, havia sido lançado no ano anterior, 1967.
O disco também conta com duas canções de Gil em parceria com o poeta Torquato Neto, outro participante ativo da Tropicália: “Domingou” e “Marginália II”.
3 – Tropicália ou Panis Et Circensis (1968)
Em julho do mesmo ano -1968 – ainda foi lançado o álbum mais importante da fase Tropicalista, disco que representa o manifesto musical do movimento e que recebeu – inclusive – o nome de “Tropicália ou Panis Et Circencis”.
Participam do álbum todos aqueles envolvidos com o Movimento Tropicalista: além de Caetano Veloso e Gilberto Gil – Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé – acompanhados dos poetas Capinam e Torquato Neto, e do maestro Rogério Duprat.
Entre as canções, está a faixa que dá nome ao disco, “Panis Et Circences”, parceria de Caetano e Gil que é uma sátira das convenções burguesas em resposta ao regime militar e à consequente liberalização econômica em meados da década de 1960.
Embora a rejeição de alguns aspectos da sociedade fosse comum na música brasileira, ela nunca havia sido apresentada dessa maneira. A melodia é irregular e mescla elementos da música tradicional brasileira com o rock internacional, além de ter trazido inúmeros instrumentos e sons novos, como o toque de cornetas.
Outras músicas muito significativas são “Bat Macumba”, também de Caetano e Gil – música que traz pitadas de rock psicodélico – “Baby”, de Caetano e eternizada na voz de Gal Costa, que fala de cultura pop e faz críticas à uma sociedade capitalista e consumista; e “Geleia Geral” (de Gilberto Gil e Torquato Neto) e “Mamãe, Coragem” (de Caetano e Torquato, interpretada por Gal).
Além delas, destaque também para a canção de “Parque Industrial”, de Tom Zé – outro retrato fiel da Tropicália – que, unindo música brasileira e influências estrangeiras, descreve um mundo massificado e reproduzido em escala de mercado.
“Tropicália” foi eleito o segundo melhor disco de música brasileira da história, pela Revista Rolling Stone, em 2007.
4 – Tom Zé – Grande Liquidação (1968)
Em dezembro de 1968, Tom Zé conquistou o primeiro lugar no IV Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, com a sua canção “São Paulo, Meu Amor” ou “São São Paulo”.
Ainda no mesmo ano, o baiano – um dos mais importantes representantes da Tropicália – lançou o seu primeiro disco “Tom Zé – Grande Liquidação”, que carregava fortes traços tropicalistas.
Além da canção com a qual venceu o Festival, o disco conta com a interpretação do artista para “Parque Industrial”, que já havia entrado para o álbum “Tropicália ou Panis Et Circencis”, dessa vez com a participação da banda Os Versáteis.
Outra música importante do álbum é “Namorinho de Portão”, que no ano seguinte fez muito sucesso na voz de Gal Costa.
5 – Gal Costa (1969)
Em setembro de 1968, Caetano Veloso havia apresentado a canção “É Proibido Proibir”, no 3º Festival Internacional da Canção. Vestido com uma roupa de plástico e acompanhado das distorções de guitarra de Os Mutantes, Caetano foi vaiado pela plateia e desagradou o júri.
Naquele momento, o artista fez um discurso histórico – antes de ser desclassificado e se retirar, junto com Gilberto Gil (que também apresentava a sua canção “Questão de Ordem”) – em que diz a emblemática frase: “Vocês não estão entendendo nada!”. E não estavam mesmo. Era um novo momento para a música popular brasileira e não tinha mais volta.
Em tempos duros de repressão – no auge da Ditadura Militar e diante da recente instauração do Ato Institucional nº 5 – com o cerceamento das liberdades democráticas, de expressão e das criações libertárias, o movimento Tropicalista sofreu forte censura e perseguição.
Caetano e Gil – já grandes ídolos de uma geração e líderes do movimento – foram presos em dezembro de 1968 e, depois, obrigados a se exilar em Londres, até 1972.
Neste período, Gal Costa tornou-se – quase que forçadamente – a grande voz do movimento Tropicalista, representando os amigos exilados com sua voz e sua postura contra a ditadura militar brasileira.
Foi quando, 1969, a cantora lançou o seu primeiro álbum individual, “Gal Costa”, outro disco importantíssimo dessa época, que conta com a canção “Divino Maravilhoso” (de Caetano e Gil), defendida por ela no IV Festival da TV Record, em uma apresentação revolucionária, que soava como grito de liberdade para a juventude da época. A canção ficou em terceiro lugar no Festival.
O nome da música também deu nome ao programa de vanguarda “Divino, Maravilhoso”, comandado por Caetano e Gil na TV Tupi, do qual participavam Jorge Ben Jor, Os Mutantes, Gal Costa e o conjunto Os Bichos.
O programa estreou em outubro de 1968 e teve que ser interrompido em dezembro do mesmo ano, por conta da prisão de Caetano e Gil, seguida do exílio forçado dos artistas em Londres. Veja o que saiu sobre o programa – e o Movimento – em uma matéria na época, no jornal Folha de São Paulo.
“Um ano após o estouro de ‘Alegria, Alegria’ e ‘Domingo no Parque’, um ano após a sacudidela na música popular brasileira, de que resultaram novas concepções, novos caminhos, somente um ano depois de discutidos, condenados e elogiados, Caetano Veloso e Gilberto Gil conseguem um programa na televisão.
Só anteontem em “‘Divino, Maravilhoso‘, na TV Tupi, o público telespectador, ou a massa média, começa apreciar mais extensamente a estética nova que os baianos se propõem e propõem comunicar. Só agora, com programa regular, sistemático, Caetano e Gil têm oportunidade de testar o seu novo comportamento musical.
Da aceitação popular ou não, da deglutição ou não, do consumo ou não, já que eles estão na faixa do ‘produssumo’ – produzir para o consumo, no neologismo criado por Décio Pignatari – depende a sobrevivência do grupo e a validez de suas teses, ou de sua revolução.
Um novo conceito estético, radicalmente desvinculado do passado (‘Isso que anda por aí está tudo velho’, disse Caetano) e, integralmente integrado no presente – não no futuro – é o que pretendem os baianos e foi o que procuraram mostrar anteontem na estréia de ‘Divino, Maravilhoso’.
O álbum “Gal Costa”, de 1969, também conta com outra gravação de “Baby” – desta vez com participação do próprio compositor, Caetano – e com “Namorinho de Portão”, de Tom Zé.
Mais sobre a Tropicália
O termo “Tropicália” foi usado pela primeira vez pelo artista Hélio Oiticica, para uma obra de arte de mesmo nome que ele expôs no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1967.
A obra demonstrava o desejo de Hélio de dar à arte contemporânea um caráter especificamente brasileiro. O artista introduziu nesse trabalho a desordem, a criatividade e a coletividade das experiências vividas, injetando uma “realidade brasileira” para subverter a “pureza” do modernismo europeu.
Alguns dizem que o início da “Tropicália” se deu em 1928, quando o polêmico poeta brasileiro Oswald de Andrade publicou o “Manifesto Antropófago”. Sob a forma de um ensaio, a principal alegação do autor era a de que o histórico do Brasil de “canibalizar” (ou criar algo novo após absorver) outras culturas era o principal ponto forte do país.
Ele dizia que, ao tirar proveito do interesse europeu modernista pelo primitivismo, o canibalismo se tornou uma forma de o Brasil se autoafirmar contra o domínio cultural pós-colonial europeu. A linha mais icônica do Manifesto, que aparece escrita em inglês, é: “Tupi or not Tupi: that is the question”.
Trata-se tanto de uma celebração aos tupis, que praticavam algumas formas de canibalismo em rituais, quanto de um exemplo metafórico do canibalismo que “come” Shakespeare ao se basear na famosa frase “To be or not to be, that is the question” (em português, “Ser ou ser, eis a questão”).
As ideias apresentadas neste ensaio e a introdução da Tropicália na esfera cultural por Hélio Oiticica ajudaram a inspirar uma maior mudança cultural e política no Brasil, em que muitos adotaram o espírito de mesclar influências para criar algo único.

O Movimento Tropicalista não se restringiu apenas à música. A influência da Tropicália pode ser vista na literatura, com o trabalho de Torquato Neto; no cinema, por meio de Glauber Rocha e seu Cinema Novo; e no teatro, com o trabalho de Zé Celso e do Teatro Oficina.
O Tropicalismo abriu um novo caminho para que os artistas contemporâneos adotassem novas culturas e emprestassem elementos delas. A influência do movimento ultrapassou até mesmo as fronteiras do Brasil, com artistas como David Byrne, Beck, Devendra Banhart e Nelly declarando que a Tropicália teve impacto sobre o trabalho deles.
A Tropicália levou o multiculturalismo a um novo patamar, e as pessoas que faziam parte do movimento o transformaram em uma nova forma de cultura que podia ser ouvida, vista e sentida. Embora a duração desse movimento tenha sido breve – quando Caetano e Gil foram para o exílio, ele começou a se dissolver e a se transformar, aos poucos, em outras manifestações – no Brasil, o legado eterno da Tropicália continua sendo fonte de inspiração até os dias de hoje.



