A música brasileira sempre soube atravessar fronteiras sonoras. Do encontro entre o popular e o erudito nasceram alguns dos momentos mais brilhantes da nossa história musical.
Heitor Villa-Lobos é o grande símbolo dessa fusão: apaixonado por Johann Sebastian Bach, ele transportou a obra do compositor alemão para os ritmos do Brasil, criando – entre 1930 e 1945 – peças como as “Bachianas Brasileiras”, em que o barroco europeu encontra o canto popular, a força choro e a embolada.
“O Trenzinho do Caipira”, por exemplo,é o subtítulo de um movimento da suíte musical “Bachianas brasileiras n.º 2” em forma de tocata. Seu subtítulo se refere aos trens locais na época, bastante presentes no interior do Brasil. A sonoridade dessas locomotivas é representada na composição não por esta possuir um programa, mas sim pela textura dos instrumentos na composição.
Em 1978, a canção ganhou letra, inspirada no poema de Ferreira Gullar e entrou para o álbum “Camaleão”, de Edu Lobo, artistas que tem bastante influência do erudito em seu trabalho:
Esse espírito de misturar universos nunca deixou de nos acompanhar. Se nas primeiras décadas do século XX Villa-Lobos mostrou que a música clássica poderia dialogar com o Brasil profundo, hoje artistas da geração contemporânea continuam explorando essas pontes. O resultado é uma música que soa pop, moderna e acessível, mas que carrega em seus arranjos, harmonias e escolhas estéticas a influência erudita.
Villa-Lobos abriu caminho para que os compositores brasileiros não vissem a música clássica como algo distante. Sua obra mostrou que o erudito não precisava estar preso a palcos formais ou ao repertório europeu: ele poderia ganhar sotaque brasileiro e ser acessível. Esse gesto se reflete até hoje, em artistas que encontram na sofisticação do erudito novas possibilidades de criação.
O encontro do erudito com o contemporâneo, do clássico com o popular
Não é difícil encontrar na música popular ecos dessa tradição. Tom Jobim, por exemplo, era profundo conhecedor da música clássica e trouxe para a Bossa Nova harmonias sofisticadas que dialogam diretamente com Claude Debussy e Maurice Ravel. A canção “Luiza”, de 1973, é um exemplo disso.
Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal também seguiram por essa trilha, criando obras em que o experimental e o erudito convivem com a improvisação popular.
“Água & Vinho” (1972), uma das composições mais conhecidas de Gismonti, é quase uma peça de música de câmara. O piano explora texturas e harmonias que dialogam diretamente com a música erudita, mas a melodia tem a simplicidade e a força da canção popular.
“Música das Nuvens e do Chão” (1980), do agora saudoso Hermeto Pascoal, mostra sua capacidade de orquestrar timbres e improvisos como se fossem uma “sinfonia popular”. Hermeto explora estruturas próximas ao erudito, mas com liberdade jazzística e raízes brasileiras.
Ainda mais perto de nós
Entre os artistas ainda mais jovens, há muitos exemplos de como o erudito está presente nas canções.
Nomes como Amaro Freitas, exímio pianista pernambucano que – vindo do jazz e do frevo – dialoga com a complexidade das estruturas eruditas em sua construção rítmica e harmônica.
Sua obra incorpora à linguagem do jazz sonoridades e referências a diversas manifestações da cultura popular brasileira, além de elementos rítmicos da música africana. O músico utiliza, entre outras, a técnica do “piano preparado”. Ele foi apontado revelação do jazz internacional por “uma abordagem do teclado tão única que é surpreendente”:
Outro entre os nomes da cena mais recente, é o pianista Jonathan Ferr, carioca de Madureira que desponta como um herdeiro natural dessa tradição de fusões. O compositor faz o que chama de “Urban Jazz”, e promove o encontro da música erudita e do jazz com a experiência popular brasileira, criando uma linguagem própria e acessível.
O Tenor Jean William é outro jovem talento que está levando o erudito ao popular, com sua bela voz. O cantor conquistou grande reconhecimento ao se tornar o tenor solista da Orquestra Filarmônica Bachiana SESI-SP, sob regência do maestro João Carlos Martins.
Já tendo se apresentando com orquestras pelo mundo inteiro, agora ele se lança em um trabalho autoral, com influências também da música popular brasileira:
Já Hamilton de Holanda, com seu bandolim, mistura improviso e virtuosismo que lembram tanto um concerto barroco quanto uma roda de choro. Sua canção “Paz no Mundo”, por exemplo, nasceu em 2020, no auge da pandemia de Covid-19, ano em que ele compôs 366 músicas, uma por dia, já que o ano foi bissexto.
Essa foi feita inicialmente para uma formação de canto coral, com baixo, tenor, contralto e soprano. Em 2022, diante da tragédia da guerra da Rússia com a Ucrânia, o compositor rebatizou o tema como “Paz no Mundo”.
E não podemos nos esquecer das grandes vozes femininas da nossa música que trazem influência intensa da música clássica, como é o caso das grandes cantoras Mônica Salmasoe Ná Ozzetti.
Aqui, Mônica, ao lado do pianista André Mehmari – que funde com maestria os universos popular e erudito – interpreta “Paula e Bebeto”, deMilton NascimentoeCaetano Veloso.
Já Ná Ozzetti, em “Nosso Amor” (de Dante Ozzetti e Luiz Tatit, lançada em 1996, no álbum Estopim), trabalha com harmonias sofisticadas e arranjos de cordas que evocam um clima camerístico. Sua discografia é repleta de escolhas que aproximam a canção brasileira de uma estética erudita.



