“Malandro não é um cara ruim, pelo contrário, malandro é um cara esperto, amigo de todos”, já dizia Bezerra da Silva, com seu sorriso debochado e seu olhar afiado para o cotidiano. Em suas músicas, o malandro não é o vilão da história, mas o protagonista que conhece as regras do jogo e sabe driblá-las com humor, leveza e sabedoria. O malandro de Bezerra é, antes de tudo, um filósofo da rua — um homem comum que aprendeu a sobreviver em meio às injustiças, à desigualdade e à dureza da vida.
Bezerra compreendia que a malandragem não é sinônimo de trapaça, e sim de inteligência social. É o instinto de quem entende os códigos da vida e se adapta às circunstâncias sem perder a essência. O verdadeiro malandro é aquele que escapa das armadilhas com elegância, que usa o riso para desarmar a violência e que encontra caminhos onde o sistema insiste em colocar muros. É o homem do povo que se defende com ironia, não com agressividade; que critica com música, não com ódio.
Nas letras de Bezerra, a malandragem tem ética. Ela é a arte da sobrevivência, o jogo de cintura necessário para viver num país em que, muitas vezes, o trabalhador honesto é o primeiro a ser explorado. Por isso, em canções como “Malandragem Dá Um Tempo”, “Se Gritar Pega Ladrão” e “A Semente”, o cantor retrata o cotidiano das favelas com um misto de denúncia e humor, mostrando que a malandragem é também uma forma de resistência.
O malandro é o oposto do criminoso: ele é o observador atento da vida, o que conhece as regras e sabe quando e como dobrá-las sem ferir ninguém. Ele é o que chega sorrindo, o que conversa com todo mundo, o que conhece o dono do bar, o policial da esquina e o vizinho da laje. É o cara que entende que viver bem é saber se relacionar, respeitar e, acima de tudo, manter a dignidade mesmo quando o mundo tenta arrancá-la.

Bezerra da Silva transformou essa figura em símbolo de sabedoria popular. Com seu jeito tranquilo e seu timbre inconfundível, ele traduziu em samba o que a rua ensina todos os dias: que a esperteza do bem é uma forma de inteligência, e que o humor é uma arma poderosa contra a opressão. Suas músicas são lições de filosofia urbana, onde cada verso é uma reflexão sobre a vida, o trabalho, o poder e a injustiça — sempre embaladas por um ritmo que convida à dança e ao riso, mesmo quando fala de dor.
Em um país acostumado a julgar pela aparência, Bezerra devolveu humanidade ao malandro. Ele mostrou que o sujeito de chinelo, boné e samba no pé pode ser mais honesto, sensato e solidário do que muitos engravatados. O malandro bezerreano é o homem que compartilha, que empresta o pouco que tem, que entende o valor da amizade e da lealdade. Ele é o retrato de um Brasil real — aquele que sobrevive com criatividade, improviso e amor à vida.
Mais do que um personagem, o malandro é um estado de espírito. É a leveza diante do caos, a sabedoria de quem aprendeu a rir das próprias dificuldades. É a consciência de que esperteza não é crime, e que viver com jogo de cintura é uma arte que poucos dominam.
Bezerra da Silva, com sua genialidade, eternizou essa filosofia popular. Ele mostrou que o malandro de verdade não rouba, não engana, não faz o mal — ele apenas entende que, num mundo desigual, a malandragem é uma forma de continuar de pé. Ser malandro, afinal, é ser amigo, solidário, brincalhão e dono da própria sorte. É ser, acima de tudo, brasileiro — e fazer da vida, por mais dura que seja, um samba bem tocado.
Essa publicação é fruto de uma parceria especial entre a Novabrasil e o Fórum Brasil Diverso, evento realizado pela Revista Raça Brasil nos dias 10 e 11 de novembro, que celebra a diversidade, a cultura e a potência da música negra brasileira. Não perca a oportunidade de participar desse encontro transformador — inscreva-se já www.forumbrasildiverso.org


