Numa noite silenciosa, uma estrela cruza o céu do Oriente e três sábios partem em jornada. Tradicionalmente conhecidos como Gaspar, Melchior e Baltasar, esses reis magos, nas tradições cristãs chamadas também de sábios, representam a ideia de que a salvação alcança “todos os povos” da Terra.
No imaginário medieval, os três reis passaram a encarnar as três raças conhecidas: Melchior, velho de barba branca, simboliza o europeu; Gaspar simboliza o asiático e Baltasar, o africano.
Eles trazem presentes ricos em significado: ouro, incenso e mirra, as três dimensões do Messias: sua realeza, sua divindade e sua humanidade. Celebrados na festa da Epifania (6 de janeiro), os reis magos são um símbolo cristão de manifestação divina ao mundo.

Da Ibéria ao Brasil: nascimento e rituais da Folia de Reis
A Folia de Reis nasceu dessa memória bíblica na Península Ibérica, trazida para o Brasil pelos colonizadores portugueses ainda no século 16. Em Portugal e Espanha, festas populares dedicadas aos reis magos, os chamados reisados ou simplesmente folias, faziam parte dos festejos natalinos.

No Brasil colonial, a tradição migrou para o meio rural e recebeu novos contornos sagrados, misturando influências indígenas e africanas aos ritos católicos. Com o tempo, cada região criou sua própria versão: surgiram os “reisados”, “bois-de-janeiro” e “pastorinhas”, mas em essência todos reencenam a peregrinação dos Magos até Jesus.
Entre 25 de dezembro e 6 de janeiro, grupos conhecidos como foliões percorrem as ruas e visitam casas para cantar músicas sagradas que relembram a jornada dos Reis Magos. Em cada residência, os foliões apresentam versos e cânticos nos quais se explicita que eles vêm “do Oriente” para “Belém”, a fim de visitar o Menino Jesus.
Os moradores oferecem comida e prendas em agradecimento, cumprindo promessas. Ao final das romarias, a generosidade se materializa: as ofertas reunidas são servidas em uma grande refeição comunitária, para reforçar os laços sociais entre os vizinhos e seguidores da festa.

Os grupos de Folia de Reis unem diferentes personagens e sons. Há sempre o mestre (ou embaixador), líder que organiza as músicas e os versos; um contramestre (ou ajudante), e o bandeireiro, que leva a bandeira do grupo a cada visita.
As figuras centrais são, naturalmente, os três Reis Magos encarnados pelos próprios foliões. Mas é o palhaço – ou bastião – que exerce papel cômico e ritual: com máscara e bastão, ele protege a bandeira sagrada do grupo e atrai o público com brincadeiras, enquanto apitos anunciam a chegada e a partida da Folia.
Os demais membros formam o coro de violeiros e percussionistas, com instrumentos tradicionais (viola caipira, violão, acordeão, tambor, pandeiro, triângulo etc.) e entoando cânticos.
Cada grupo ostenta seu próprio estandarte, considerado objeto sagrado. De fato, na liturgia popular da folia o momento de entregar a bandeira ao dono da casa visitada é como levar o sagrado para o espaço mais íntimo do lar, momento simbólico de bênção e de conclusão do rito naquela porta.
Folia de Reis hoje: memória viva e patrimônio

Pesquisas recentes identificaram centenas de grupos ainda atuantes em áreas rurais e pequenas cidades, especialmente nos estados do Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Goiás.
Somente em Minas Gerais, o IPHAN cadastrou mais de 1.600 folias de reis em cerca de 400 municípios, o que mostra a força do costume. Apesar do êxodo rural da segunda metade do século 20 ter levado muitos foliões para a cidade, a tradição encontrou novos palcos: encontros de folias em festivais de cultura popular – no Rio, em São Paulo, Brasília e outros – mantêm os cânticos e danças vivos fora do ciclo natalino tradicional.
Reconhecendo seu valor cultural, órgãos oficiais e pesquisadores embarcaram no esforço de registrar a Folia de Reis como patrimônio imaterial brasileiro. No fim de 2023, o IPHAN publicou edital para estudos transdisciplinares que envolvem comunidades de foliões, georreferenciamento dos grupos e levantamento histórico das transformações da folia ao longo do tempo.

Em paralelo, teses acadêmicas têm destacado como a festa fortalece a identidade de famílias e comunidades inteiras, preservando memórias orais e saberes tradicionais.
Hoje, sob a mesma estrela que guiou os Magos, a Folia de Reis continua a ser ponte entre passado e presente: seus versos cantados nas portas evocam narrativas ancestrais, enquanto a alegria coletiva de dançar e partilhar reforça a coesão social. Fé, música e gratidão marcam esse ritual popular, que se renova a cada Ano Novo mantendo vivas as cores, os sons e os símbolos dos Três Reis Magos – ouro, incenso e mirra – no coração da cultura brasileira.



