SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um dos maiores orgulhos de Adalberto Gonçalves Lira Júnior, de 36 anos, é ver o filho, Jhonatan, estudando no Colégio Mackenzie. Aos 15 anos, o garoto cursa o 9º ano do colégio, um dos mais tradicionais da capital paulista, fundado há mais de 150 anos.
O prazer de Júnior não se restringe ao fato de o único filho estudar em uma instituição conceituada. É porque, quando tinha a idade de Jhonatan, Júnior morava nas imediações do Mackenzie -não em algum dos elegantes apartamentos do bairro de Higienópolis, na região central de São Paulo. Júnior era morador de rua, dormia debaixo de uma banca de jornal na praça Rotary, ao lado da Biblioteca Monteiro Lobato, com medo de ser mordido por ratos ou atacado por bandidos.
Hoje Júnior comanda ao lado da mulher, Joyce, 34 anos, um negócio próprio de comida de rua. São quatro carrinhos que vendem cachorro-quente, pipoca, açaí, milho e churros no bairro do Jaraguá, zona norte de São Paulo, e outros seis que trabalham em eventos. O faturamento da família gira em torno de R$ 20 mil ao mês. Para os padrões socioeconômicos brasileiros, Júnior saiu da classe E para a A.
O exemplo do ex-morador de rua que se tornou empresário é um caso raríssimo na pirâmide social brasileira. De acordo com um estudo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o brasileiro que está entre os 10% mais pobres da população levaria nove gerações -o equivalente a 180 anos- para atingir a classe média no país, considerando as atuais condições de renda, educação, trabalho e saúde.
“A função do Estado é reduzir a desigualdade de oportunidades, o que se consegue mais rápido por meio de uma política fiscal equilibrada: taxar mais os mais ricos e menos os mais pobres”, diz a economista Carla Beni, professora dos cursos de MBA (Master of Business Administration) da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Só assim é possível realocar recursos de forma eficiente para reduzir os desníveis sociais.”
Mas o que se vê no Brasil, segundo a especialista, é um Estado que promove a desigualdade. “Como eu posso falar em igualdade de oportunidades se 48% da população não conta com saneamento básico?”, questiona.
“É claro que o exemplo do ex-morador de rua que se torna empresário deve ser aplaudido, ele é um vencedor. Mas quantos tentam e não conseguem? Quantos sofrem todos os dias para tentar conseguir o básico -alimentação, moradia, saúde, educação? Não é uma questão de meritocracia”, diz Carla. “Primeiro eu preciso corrigir a desigualdade de oportunidades, que leva à desigualdade de renda. Só depois eu posso avaliar a desigualdade de desempenho, de um indivíduo para o outro”, afirma a especialista da FGV.
O estudo da OCDE, intitulado “A broken social elevator? How to promote social mobility” (Um elevador social quebrado? Como promover a mobilidade social), de 2018, analisa a quantidade de gerações que a população mais pobre de 24 países que compõem a OCDE necessita para chegar à classe média. O resultado aponta desde duas gerações na Dinamarca até sete gerações na Hungria, com média de 4,5 gerações entre os países.
A pesquisa também analisou o tempo necessário para que os 10% mais pobres de países emergentes atingissem a classe média: com nove gerações, o Brasil só perde para a Colômbia (11 gerações)- país que, curiosamente, passou a integrar o OCDE em 2020. Na organização, estão nações com elevado PIB per capita e bons indicadores de desenvolvimento humano. A adesão do Brasil ao grupo está em análise.
Na opinião do economista José Afonso Mazzon, professor titular da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo), a mobilidade social é desejável e necessária. “Senão viveremos uma sociedade de castas”, diz Mazzon que, ao lado do professor Wagner Kamakura idealizou o Critério Brasil de Classificação Econômica, que dividiu a população nas classes A, B, C, D e E, com base em dados da Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE.
Com 39 variáveis, que vão desde grau de instrução a acesso a serviços públicos, passando por posse de eletrodomésticos, com recortes diferentes por regiões do país, o critério foi criado em 2008 e desde então vem sendo atualizado. A versão mais recente considera classe A quem tem renda média familiar de R$ 21,8 mil. Já a renda média mensal das classes D/E está em R$ 900.
“A principal política pública para favorecer a mobilidade social é a educação, a capacitação do indivíduo, que muitas vezes migra do trabalho braçal para o intelectual”, diz Mazzon.
Pensando nisso, o administrador Vinícius Mendes Lima criou a agência de fomento social Besouro. “Eu acredito em ascensão social e econômica a partir do empreendedorismo”, diz ele, que negocia cotas com a iniciativa privada para financiar cursos de capacitação para a base da pirâmide. “Nós atendemos quem nem sequer pensa em ser MEI [Microempreendedor Individual]”, diz.
Por meio de uma metodologia simples, que envolve um curso de 20 horas de duração e uma consultoria de três meses para implantar o plano de negócios desenhado com o empreendedor, a Besouro atendeu mais de 150 mil pessoas nos últimos cinco anos.
Entre elas, está Rebeca Cruz, de 23 anos, que montou uma agência de viagem há dois anos. “Hoje eu tenho um lucro médio de R$ 5.000 por mês. Mas, sem a Besouro, estaria faturando um salário mínimo e meio, que era o que eu ganhava antes de fazer o curso”, diz ela, uma autodidata em inglês e espanhol, que já foi duas vezes ao Canadá para cursar francês. Para 2024, a meta de Rebeca é um lucro de R$ 10 mil.
Do total de alunos atendidos pela Besouro, 70% saem do curso gerando renda, diz Lima. Mas um ano depois, 56% continuam com o próprio negócio. “Muita gente pensa que o principal entrave para se lançar em um negócio é o crédito. Mas na verdade é a autoestima”, afirma. “Essas pessoas se sentem completamente despreparadas. É preciso fazê-las enxergar que elas podem ir além do assistencialismo.”
Para o sociólogo Pedro Ferreira de Souza, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a população pobre convive com uma série de desvantagens diariamente que só perpetuam a sua condição e tornam a competição no mercado de trabalho muito desigual.
“Elas moram longe e mal, ganham pouco, a distância da casa ao trabalho não só prejudica a sua qualidade de vida, como as impede de estudar, porque não têm tempo. Elas não se alimentam corretamente, o que acaba prejudicando a sua saúde, e os serviços de assistência médica são precários”, diz.
Daí a importância das políticas de ação afirmativa, na tentativa de minimizar, em parte, tamanha desigualdade. “É uma saída para impedir que a pobreza se repita, geração após geração.”
DANIELE MADUREIRA / Folhapress