SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O rastro de destruição e de problemas causados pelas inundações no Rio Grande do Sul tem sido comparado ao deixado pelo furacão Katrina, que em 2005 destruiu a região metropolitana de Nova Orleans, na Lousiana (EUA), atingiu outros quatro estados norte-americanos e causou mais de mil mortes.
Ainda que no Sul a proporção de mortes e de áreas atingidas sejam menores até o momento, profissionais de saúde apontam semelhanças entre as duas tragédias, como falta de prevenção de desastres naturais e inexistência de uma coordenação centralizada de decisões.
Colapso nos hospitais, dificuldade de equipes de saúde chegarem aos locais de trabalho e desabastecimento de medicamentos e outros insumos são outras semelhanças apontadas.
“Estruturas como hospitais colabaram [colapsaram] em Nova Orleans, eles tiveram que fazer retiradas de pacientes. As equipes não conseguiam chegar aos hospitais. A gente está vendo o mesmo cenário no Sul, hospitais colabando e a dificuldade de as equipes de saúde chegarem”, relata o médico Welfane Cordeiro Júnior, especialista em medicina de emergência.
De acordo com o governo gaúcho, alagamentos fecharam ao menos 17 hospitais no estado e outros 75 estão com atendimento parcial. No domingo (5), pacientes foram transferidos de helicóptero após o HPSC (Hospital de Pronto Socorro de Canoas) ficar alagado.
Nesta segunda (6), serviços médicos de Porto Alegre, como o Hospital de Clínicas, ligado à UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), registraram índices de falta de profissionais entre 25% e 30%. Muitos deles tiveram suas casas inundadas e foram para abrigos ou estão ilhados nas residências.
Segundo Cordeiro Júnior, na tragédia de Nova Orleans ficou reconhecido que houve falta de um comando unificado, com equipes trabalhando de forma coordenada, e isso levou a uma série de mudanças, inclusive na legislação.
“No Brasil, a gente precisa determinar qual é o papel da saúde dentro dessas respostas a desastres naturais. Temos uma boa legislação da Defesa Civil, mas na área da saúde há uma carência de respostas quando há esses desastres.”
Em Porto Alegre, por exemplo, o comando está bem disperso. As faculdades de medicina e seus hospitais-escolas estão responsáveis por grupos de abrigos que estão atendendo as vítimas. Com as aulas suspensas, alunos têm ajudado na assistência.
“Como as cirurgias eletivas foram canceladas, diminuiu muito a demanda, então não há desassistência ou falta de vagas nos locais onde as instituições de ensino assumiram”, afirma o médico Roberto Umpierri, professor e coordenador-geral do Telessaúde ligado à UFRGS.
No entanto, segundo outros três médicos ouvidos pela Folha e que preferiram não se identificar, falta organização na assistência e um comando único, especialmente na questão da liberação dos insumos.
No sábado (4), por exemplo, os médicos não conseguiram retirar medicamentos na farmácia distrital porque a prefeitura exigiu que só um farmacêutico poderia dispensá-los e não havia esse profissional no local. Nesta segunda (6), a prefeitura anunciava que haveria falta de itens básicos como gaze, luvas, microporo, esparadrapo, soro fisiológico, fraldas para adultos e crianças e repelentes.
Segundo o médico de família André Luiz da Silva, que está gerenciado em dois abrigos da capital gaúcha, que estão atendendo cerca de 2.000 pessoas, “o cenário é de guerra.” “Temos informação de que até material de coleta de exame, como garrote e seringa, pode faltar. Está cada vez mais racionado.”
Segundo ele, outra preocupação é o desabastecimento de antibióticos necessários para a profilaxia da leptospirose, infecção transmitida por meio da exposição direta ou indireta à urina de animais infectados, principalmente ratos. A bactéria Leptospira consegue penetrar na pele humana que apresenta lesões ou que fica imersa durante longos períodos em água contaminada.
No domingo, a Sociedade Brasileira de Infectologia, em conjunto com a Sociedade Gaúcha de Infectologia e a Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, divulgou nota técnica alertando sobre aumento do risco de leptospirose e a melhor forma de realizar a profilaxia para prevenir a doença.
Embora o uso de antimicrobianos não seja recomendado como conduta de rotina, a nota ressalta que em situações de alto risco, onde há exposição contínua a alagamentos e águas contaminadas, com ou sem lesões na pele, essa intervenção pode ser considerada.
A orientação se baseia em estudos, incluindo um guia da OMS (Organização Mundial da Saúde) de 2003, que, apesar de algumas limitações, como baixo número de participantes e falhas de randomização, indicam um potencial benefício no uso desses medicamentos em casos como o do Rio Grande do Sul.
A principal recomendação das entidades responsáveis pelo documento é o uso de doxiciclina, administrada em dose única para adultos em pós-exposição de alto risco. Para crianças, a quantidade é calculada com base no peso corporal, com dose máxima estabelecida. Como alternativa, a azitromicina pode ser utilizada nas mesmas condições.
De acordo com a nota, os grupos elegíveis seriam equipes de socorristas de resgate e voluntários com exposição prolongada à água de enchente, quando equipamentos de proteção individual não são capazes de fazer essa prevenção.
“Infelizmente, já temos desabastecimento porque o medicamento já virou uma nova cloroquina. Tem colega nosso já falando em quimioprofilaxia [para leptospirose], sendo que o Ministério da Saúde não indica [o uso indiscriminado]. As evidências são muito frágeis”, diz Silva.
CLÁUDIA COLLUCCI / Folhapress