Sempre fui crítico do ENEM e não deixarei de sê-lo agora. O que nasceu com a sina de avaliar as tendências e nivelamento dos diversos parâmetros curriculares brasileiros, tornou-se, numa canetada covarde, um grande vestibular, enfeitado pela suposta ideia de acesso democrático à universidade pública e, por que não?, privada brasileira.
O Enem é um embuste, sempre foi. É uma prova faz-de-conta anos luz de distância da realidade dos alunos brasileiros, principalmente aqueles oriundos das camadas mais vulneráveis da sociedade. O Enem exige repertório, capacidade de leitura, senso de observação, além de uma sólida formação de conteúdos, principalmente nas matérias ligadas à matemática e ciências da natureza. Em suma, o exame não é acessível a todos, embora muita gente acabe aprovada, muito mais pelas políticas afirmativas ou baixo nivelamento de notas. Os cursos de alta demanda ainda são propriedade dos mais abastados ou privilegiados do tecido social. Não há como mascarar essa realidade. O que sobra é um discurso retórico e carcomido pelo tempo. Ridículo.
Chega a ser risível o encaminhamento da discussão do último Enem. Gente atropelando a realidade, querendo impor uma condição ideológica que nunca, nunca esteve presente em qualquer outra edição. A suposta intervenção do Estado na confecção das questões deu à prova um caráter de matriz ideológica que ela nunca teve. Ouvi uma série de bobagens oriundas de todas as linhas do pensamento político brasileiro. Alguns procurando matizes progressistas nas questões, outros criticando um viés de esquerda que precisa ser aparado. Houve quem dissesse que a prova tinha a cara do governo. Boa parte aplaudiu a estupidez, enquanto outra parte se indignava e acreditava piamente na tolice.
O Enem já foi alvo de todo tipo de atrocidade, desde o furto da prova até o mau caratismo jornalístico de preparar um texto bomba, com pedaço do hino do Palmeiras, com a única intenção de vilipendiar e massacrar os critérios de correção dos textos. Cansei de ouvir que um discurso de esquerda daria uma nota extraordinária ao aluno. São coleções e coleções de bobagens que tentam constranger os métodos de avaliação.
O Enem é apenas uma prova, como tantas no Brasil. Prova feita para dar um critério de meritocracia de ingresso na universidade que, de democrático, não tem absolutamente nada. Quando o Inep, instituto responsável pela elaboração, aplicação e correção da prova propôs alguma temática que pusesse em jogo as políticas governamentais, qualquer que fosse essa política? Em 2013, por exemplo, quando assistimos aos maiores protestos de rua que esse país viveu, de forma espontânea, o tema foi os efeitos da lei seca no Brasil. Houve sempre uma blindagem em relação aos temas mais profundos. Nunca se pediu para analisar corrupção, crimes contra o patrimônio público entre outros. Mesmo temas sobre meio ambiente, foram pinceladas leves, exigindo pouca profundidade.
No exame deste ano, nada foi diferente. Colocar um texto de Zé Ramalho nada teve de ousado ou inquietante, a não ser para um pequeno grupo ativista que traduz um estigma de politização anacrônica. Os jovens não conhecem Zé Ramalho, eles conhecem outras figuras, até mais cortantes na realidade que vivem. Entretanto essas figuras não estavam na prova, como não estavam as linguagens dos anúncios do Instagram e do Facebook. Não pediram para que os jovens mostrassem o quanto são tocados pela história que eles vivem no dia a dia e pela ambiguidade política dos sons que cantam e absorvem. A prova é velha, é o mais do mesmo. O resultado será o óbvio. Muitos passarão e darão a impressão que são a fina flor da sociedade intelectual. A verdadeira discussão sobre o acesso à universidade, como consequência de uma educação formadora de qualidade e democrática ainda está longe de acontecer. Por enquanto sobrevive o admirável gado velho. Que pena!