Copa tão natural como Tang de laranja

Há uma enorme diferença entre respeitar uma cultura e exaltá-la. A abertura da Copa do Mundo do Qatar deixou isso muito claro para mim. Respeito e entendo o que acontece naquela região do Oriente Médio, mas abomino completamente.

Não compactuo de uma visão machista, homofóbica, elitista e eugênica de sociedade. Muito menos exalto toda suntuosidade alicerçada na morte dos mais humildes, ou mesmo na humilhação por que passaram, em situação que beirou a condição de escravatura, daqueles que ajudaram na construção dos estádios para a realização do evento.

Doha é uma mentira feita para vender. Assim como Dubai e tantas outras cidades daquela região. O paraíso prometido só existe na cabeça dos que se encantam pelo canto das sereias. Nada daquilo é real, oriundo de uma história de um povo nômade e lutador, ao contrário, é a fotografia do luxo exacerbado, do mundo açucarado, artificial como um Tang de laranja.

Para quem acompanhou a cerimônia pela televisão, o registro foi claro e não passou recibo de outra forma. O mundo machista sobressaiu de forma nojenta e desmascarada. Tudo construído para dignificar a mais valia como forma de compromisso. Pouco ou quase nada se falou em equidade, apenas nas palavras eivadas de uma hipocrisia desenfreada que tomou conta de quem dela participou.

O mais lamentável, entretanto, foi a cobertura feita pela televisão brasileira. Completamente descontextualizada, tomada por um sentido encomiástico, que fez tremer no túmulo Nélson Rodrigues e sua teoria do viralatismo. Onde estava o senso crítico? Em que momento foi relatado, no dever jornalístico, a farsa das imagens que sobrepujavam a realidade?

Onde foram parar os verdadeiros jornalistas? Aqueles capazes de pinçar o engodo e mostrar ao público a comédia de horrores que estavam vendo? Preferiram ex-jogadores, cujo dever precípuo sempre foi chutar a bola e pouco ou quase nada se importar com o que passa fora das arquibancadas. Foi um gol contra. Outros virão.

Lamentável não ter capacidade de retratar a ruptura do futebol e suas sementes e raízes populares com os frutos auríferos de uma elite soberba e preconceituosa. Cheguei a ter náusea quando exaltaram a fala retrógrada do Emir do Qatar, como soberano amado e cultuado. Quanta estultice junta, meu Deus!.

Tenho medo de ser testemunha de uma virada histórica no esporte que fez parte da minha vida, que me deu tristeza e alegria, que me deu esperança e desconsolo, mas que sempre teve o gosto de terra, de grama não artificial, de bola de couro, de tênis furado, de pedaço de dedão arrancado na pancada na trave feita de pedra, que me fez aprender a ganhar e a perder com dignidade, que nunca me cobrou por ser feliz ou infeliz.

Tenho medo de deixar como herança aos meus netos, a imagem de um esporte em que o dinheiro fala mais alto que a razão. Tenho medo de que um dia o que eles estão vendo nesta copa do Qatar seja o cotidiano do esporte que ensinou ao planeta o que é ser democrático. Que já fez cessar guerras, que uniu e celebrou comunhão de povos.

A Copa do Mundo do Qatar me assusta. Cerveja a 80 reais o copo, não combina com futebol.

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