Não sei dizer “feliz natal” sem que a voz saia do coração e não da garganta. Natal é bem mais do que um simples dia. Tem magia na data. Independente de ser ou não religioso, o natal é a bem-aventurança materializada. É o dia da redenção. Uma espécie de treinamento do apocalipse. É a glória das atitudes pacíficas e o terror das maldades arquitetadas. Sorriso mescla-se com angústia num ritual ébrio e maltrapilho. É a festa da mercantilidade no quintal da igreja da nossa alma.
O reino da hipocrisia faz seu imperador no dia do natal. Da mesma forma que se trocam presentes, trocam-se farpas envenenadas. O enredo é denso e desonesto. Tudo tem preço de etiqueta colado nas roupas do tecido social.
A vitimização é o arroz de festa. Sartre dizia que o inferno são os outros. Parafraseio dizendo que o natal são os outros. Pais e filhos no palco. Até que ponto é teatro? Até que ponto tudo aquilo serve apenas para agradar a plateia e receber os aplausos da falsidade?
O que sobra do natal não é apenas a carcaça do peru. Ficam, muitas vezes, os pedaços traduzidos em memória. Quando crianças, o natal é sinônimo de presentes. Tanto os que chegam, quanto os que frustram. Há uma velha canção natalina, cujos versos traçam o desenho mais real e dolorido do natal: “Eu pensei que todo mundo/ Fosse filho de Papai Noel /Bem assim, felicidade /Eu pensei que fosse uma /Brincadeira de papel /Já faz tempo que eu pedi / Mas o meu Papai Noel não vem / Com certeza já morreu / Ou então felicidade /É brinquedo que não tem”.
O mais louco disso tudo é que essa música era e, certamente, ainda é cantada nas famílias, sem que ninguém se atreva a refletir o que ela diz. Na sociedade do natal em troca do presente, essa é a realidade. Entender que a felicidade é brinquedo que não tem, vai muito além da fronteira cega do contexto social.
É só ligar a televisão nos noticiários para ver o rosto do mercado extasiado e contente. Nada lembra a exata dimensão do natal, o verdadeiro. Quando os religiosos alertam para o sentido da data, o fazem como testemunho superficial, sem buscar nas raízes do dia, o convite, não para os presentes, mas para as reflexões e capacidade de entender a empatia como bandeira e não como retórica política.
Fernando Pessoa, poeta português, no heterônimo Alberto Caeiro , em seu magnífico “Poema do Menino Jesus”, diz em seus versos: “E ele sorri porque tudo é incrível. / Ri dos reis e dos que não são reis, / E tem pena de ouvir falar das guerras, / E dos comércios, e dos navios / Que ficam fumo no ar dos altos mares. / Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade / Que uma flor tem ao florescer / E que anda com a luz do Sol / A variar os montes e os vales / E a fazer doer aos olhos dos muros caiados”.
Esses versos traduzem o verdadeiro natal, aquele de ver o mundo à luz do mundo, as flores como encantamento, as estrelas como faróis e a caridade como missão. O melhor presente não é aquele comprado na loja de grife, muito menos o que custa mais. O melhor presente é a presença, a lembrança, o encanto, o compartilhar do pão e o vinho. Entender que a estrada é o designo e lá no fim sempre tem uma fonte, de onde se bebe e se renova, renasce a cada segundo.
Natal não tem árvores de plástico, bolinhas de vidro, piscas intermitentes. Natal tem luz brotando das pedras, dos silêncios e do ar. Feliz natal é frase de coração e de verbo torna-se substantivo concreto. Se assim não for, parafraseio Pessoa, somos muros caiados.