O presente que nunca dei a meu pai

Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, meu pai é um quadro na parede, mas como dói. Nesse dia dos pais, faço um exercício de memória e começo a viajar pelas festas que fizemos nessa data. Tento, em vão, recordar-me dos presentes que dei. Confundo datas, misturo eventos. Sobram-me sorrisos, sensação de festa. Inunda-me o silêncio de hoje, a ausência, a falta.

Pois não é que fui abrir a porta, logo cedo, para que meu pai entrasse, com seus braços abertos, o riso franco, as covinhas pronunciadas e o beijo de chegada. Abri e não havia ali um ser material, mas havia um espírito de luz que me incendiou de esperança.

Naquele momento, dei a ele o presente que nunca dei, sorri o sorriso que nunca esbocei, abracei o corpo que nunca afaguei. Descobri  o que só se descobre na infinita imensidão da nostalgia: o tempo não leva desaforo pra casa, ou se vive o hoje, ou lamenta-se na perda.

Pela primeira vez na vida, via-me uma criança perdida, buscando a minha identidade. Sabia que sou, mas nem tinha de mim a fotografia do que existo. Faltava-me o complemento. Faltava-me a essência do ser vivente. Faltavam-me as guias e os mapas do mundo.

Quando meu pai entrou na minha casa hoje cedo, eu redescobri o sentido das águas, do fogo e do ar. Caminhos novos, trilhas mágicas e sem fim. Eu continuo em meu pai e ele em mim, como a alga na pedra da praia. Inexistimos solitariamente. Sangramos o mesmo sacrifício e lapidamos os mesmos cristais.

Dei a meu pai o presente que nunca dei: a infinita certeza da continuidade. E assim, entendi que há mais terra do que a terra mede, mais encanto que o encanto oferece, mais presença do que a presença determina.

Meu pai sou eu, exalando o perfume da conspiração rebelde e transformadora. Não paramos no tempo, ajudamos a fazê-lo passar como quem tira o carro do atoleiro. Aprendemos a voar como um pelicano desajeitado. Caçamos como um tigre escamoteado e brindamos a luz como libélulas entorpecidas.

Pai e filho numa composição por vezes desafinada, mas nunca deixada de ser cantada. Pai e filho pintados como num quadro de Pollock. Pai e filho num filme de Feliini. Pai e filho numa versão do hoje com arabescos do ontem e azulejos do amanhã. Pai e filho viajando o imponderável e descobrindo as terras novas da civilização do sempre.

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