Quero a minha copa do mundo

No dia 21 de junho de 1970, eu tinha 10 anos. Ia completar 11, no próximo mês. Era um domingo friolento, nublado, tenso. Minha mãe acelerou a hora do almoço. Comemos mais cedo do que o convencional. Tudo porque ao meio-dia, assistiríamos à final da Copa do Mundo, em que o Brasil iria jogar contra a temida seleção italiana que, a duras penas, havia passado pela Alemanha, num arrepiante 4 a 3.

Luisinho, um amigo de casa, horas antes do jogo fez um alerta que me deixou desesperado:  “não podemos fazer o primeiro gol, em final de copa, quem faz o primeiro gol, perde o jogo”. Confesso que nunca na vida torci tanto para levar o primeiro gol. Mas ao meio-dia, quando a partida já havia começado, Pelé abre o placar. Sofri. Pela primeira vez na vida, eu testemunhava uma final de copa, transmitida via satélite, num Brasil doente e calado pelas baionetas e pelos tanques da ditadura. Mas era Brasil, e brasileiro ninguém segura, eta esquadrão de ouro, é bom de samba, é bom de couro, como diziam os versos de uma ufana e maravilhosa música que as rádios tocavam sem parar.

A Itália empatou o jogo. Meu desespero era visível. 90 milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração, era outro verso musical, que ecoava dentro do meu peito de pré-adolescente. Frustração não cabia ali. E não coube. Fizemos o segundo, o terceiro e fechamos a goleada com o quarto gol, nascido de um chute descomunal do capitão Carlos Alberto.

Fiz a festa que a festa precisa ser feita. Cantei, gritei, senti o gosto de ser campeão, mesmo que perdedor na batalha do futuro que me aguardava. Experimentei o perfume da superioridade, do ser brasileiro.

O tempo foi passando e eu aprendendo com ele a difícil tarefa de competir no campeonato da saúde, da educação, do trabalho, da segurança, da habitação, enfim, da política. Perdi mais que ganhei. Perdi amigos, primos, professores, perdi o esquadrão de ouro. Mas não perdi a vontade de mudar o mundo. Vim com esse defeito de fábrica.

Daqui uns dias, vamos começar a copa do mundo, de novo. Longe das competições de raiz, essa copa tem um cenário diferente, um perfume diferente. É a copa do luxo, da riqueza, da ostentação, do shopping center. Copa shopping, feita para atender os desejos ardentes de uma elite que assiste ao mundo famélico e se fausta nas garrafas de champanhe e nos antepastos de caviar.

Claro que o Brasil não tem culpa disso. Mas faz parte. Seus atletas são astros das redes sociais. Abrigam milhões de seguidores. Vendem de tudo. Menos futebol. Vivem no mundo da fantasia, encarnam o sonho do auge, desconhecendo ou ignorando a realidade de quem realmente vive do futebol sem glamour, sem dinheiro, O futebol do terrão, da várzea, dos pequenos clubes endividados, dos atletas doentes e mal assistidos que fazem a grande parte desse universo do futebol.

Isso sem contar que fomos criminosamente aviltados por uma elite antidemocrática, perdedora e estúpida, que  tomou para si as cores, as camisas e as bandeiras da nossa seleção, e ficam pedindo pelas ruas, como farrapos da vergonha alheia, a volta de tudo aquilo que representou o massacre dos direitos civis deste pais. Trata-se de apropriação indébita descarada e vingativa. Querem tirar dos brasileiros o Brasil democrático e colocar no lugar a nojenta e espúria terra dos privilégios e golpes.  Só que não.

A partir de quinta-feira, o Brasil volta para as mãos dos verdadeiros brasileiros. Os que trabalham e têm sonhos de ser campeões, nem que seja por um dia. Os que vão compartilhar o desejo de vencer o adversário do outro lado do gramado. Os que vão rezar pelas vitórias ou vão lamentar empates e derrotas, mas não vão pedir a anulação da partida, porque quando o árbitro apita o fim de jogo, vale o resultado do placar.

A partir de quinta-feira seremos um só coração, uma mesma emoção. Dividiremos, democraticamente, os nossos sonhos. Mesmo contestando nossos atletas, mesmo achando que talvez não sejam os ideais, mesmo achando que lhes falta humildade. Seremos alma, porque somos Brasil. Quem discordar, que exalte um pneu, chore no muro do quartel ou minta para si mesmo. É melhor do que Rivotril.

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