O Arquivo Novabrasil é um programa original, que promove a vida e a obra de grandes nomes da música popular brasileira. Artistas que fazem da nossa música um dos nossos maiores legados e pelo que queremos ser lembrados e reverenciados como brasileiros.
Toda quarta-feira, às 12h, um novo episódio do Arquivo Novabrasil vai ao ar em vídeo, nos nossos canais do Youtube e Spotify.
A primeira temporada especial do Arquivo Novabrasil traz a biografia de artistas que ajudaram a construir a história do samba no Brasil. E hoje, vamos conhecer a história dele: Cartola!
Sobre Cartola
Lenda da nossa música e considerado por muitos o maior sambista de todos os tempos, Cartola, com seu talento e genialidade, transformou para sempre a história da música popular brasileira.
Cartola nasceu Angenor de Oliveira, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 1908.
Na verdade, ele contava que era chamado de Agenor, até que – quando foi se casar – descobriu que no seu registro de nascimento tinha um “N” a mais e resolveu não mudar.
E isso não foi um problema, porque desde cedo ele já era chamado mesmo pelo apelido de Cartola, por conta de um chapéu-coco que usava pra proteger a cabeça na época em que trabalhava como servente de obra.
Cartola passou a infância no bairro de Laranjeiras, quando tomou gosto pela música, principalmente pelo samba.
Ainda menino, aprendeu a tocar violão com o pai, Seu Sebastião de Oliveira, de quem ganhou o primeiro cavaquinho, quando tinha 8 anos de idade.
Em Laranjeiras, entrou em contato com os ranchos carnavalescos União da Aliança e Arrepiados.
Seu pai participava do Arrepiados, tocando cavaquinho, e Cartola também desfilava com o rancho. Foi nessa época, que ele começou a aprender os primeiros acordes no cavaquinho.
As cores oficiais do rancho Arrepiados eram o verde e o rosa, cores que teriam inspirado Cartola quando, mais tarde, ele fundou a Estação Primeira de Mangueira.

O jovem Cartola também tocava cavaquinho nos desfiles do Dia de Reis, quando suas irmãs saíam em grupos de pastorinhas.
Mas as dificuldades financeiras obrigaram a família numerosa – Angenor era o mais velho de oito irmãos – a se mudar de Laranjeiras para o Morro da Mangueira.
Lá, Cartola conheceu e fez amizade com Carlos Cachaça, amigo por toda a vida e seu futuro parceiro mais constante em dezenas de sambas.

Aos 11 anos, Cartola precisou parar de estudar para trabalhar e ajudar em casa.
Trabalhou em uma gráfica, foi pedreiro, vigia e lavador de carros. E também a partir daí, passou a se dedicar mais à vida boêmia.
Depois que sua mãe faleceu, Cartola com quinze anos se desentendeu com pai, que o colocou pra fora de casa. Pouco tempo depois, quando Cartola retornou, o pai tinha ido embora do Morro com suas irmãs mais novas. Ele então se viu sozinho no Morro da Mangueira.
Sem pai e sem mãe, Cartola caiu ainda mais na boemia, madrugada afora, entre mulheres e sambas. Acabou contraindo muitas doenças por conta da vida que levava e uma vizinha chamada Dona Deolinda, passou a cuidar dele.
Apesar de ter só 25 anos, Deolinda era uma mulher madura, perto dos 17 anos de Cartola. Casada, ela abandonou o marido para dividir o barraco com aquele garoto. Cartola ganhou mulher, uma filha, sogro… uma família.
Apesar de só ter estudado até o primário, Cartola foi um ávido leitor de poetas como Castro Alves, Olavo Bilac e Guerra Junqueiro.
Além de sua bagagem de leitor, ele tinha uma genialidade natural: fazia poesia, melodia e harmonia muito boas.
O início no samba – Estação Primeira de Mangueira
Foi quando Cartola tinha 18 anos, em 1926, que ele fundou, ao lado do amigo Carlos Cachaça, de Saturnino, Zé Espinguela, Antonico e outros sambistas, o Bloco dos Arengueiros.

O grupo, que passou a concorrer com os outros blocos do morro, era um dos mais temidos, pois seus membros eram muito brigões. Além de bons no samba, eram também bons também de briga.
Mas eram melhores no samba e por isso, dois anos depois, em 1928, os Arengueiros resolveram se unir aos outros blocos de Morro para fundar a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.
Cartola, que teve o cargo de primeiro Diretor de Harmonia da Escola, foi quem escolheu as cores oficiais do grupo: verde e rosa.

Foi também Cartola quem compôs “Chega de Demanda”, o primeiro samba escolhido para o desfile da escola e que só seria gravado pelo compositor em 1974, para o disco “História das Escolas de Samba: Mangueira”.
Antes chamados “blocos”, as agremiações carnavalescas passaram a receber esse nome com a fundação da Escola de Samba Deixa Falar, no bairro do Estácio, em 1928, mesmo ano de fundação da Mangueira.
A partir daí, com a formação das Escola de Samba, as favelas e os bairros populares não poderiam mais ser acusados erroneamente como lugares da barbárie, da violência e da incivilidade e passaram a ser respeitados como lugares altamente culturais e civilizados.

O sucesso da Mangueira trouxe fama ao nome de Cartola, que se destacava como um dos principais compositores do grupo. Atrás dele subiram ao Morro da Mangueira os principais cantores do rádio da época, entre eles Silvio Caldas e também Francisco Alves, que gravou o primeiro sucesso de Cartola como compositor, “Divina Dama”, em 1933.
Alguns cantores, inclusive, queriam comprar os sambas de Cartola para colocarem seu nome na autoria. Cartola, bem como outros compositores do Morro, precisando de dinheiro, vendia. Mas muitas vezes exigia que seu nome ficasse também como autor das canções.
Os sambas de Cartola começaram a sair do morro e se popularizaram cada vez mais na década de 30. A elite brasileira começou a se interessar pelo samba do morro e Cartola foi gravado por nomes então ilustres como Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Carmen Miranda e Mário Reis.
Em 1932, o samba “Pudesse Meu Ideal”, primeira parceria entre Cartola e Carlos Cachaça ajudou a Mangueira a se tornar campeã do Carnaval daquele ano.
Uma trajetória surpreendente
Cinco anos mais tarde, Cartola foi exaltado como o melhor compositor das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, em um concurso realizado pelo Departamento de Turismo da Prefeitura do Rio.
Pouco depois deste prêmio, Cartola teve uma grande tristeza: faleceu o seu amigo e admirador Noel Rosa, aos 26 anos, deixando uma das mais ricas e admiradas obras do cancioneiro popular brasileiro.

Os dois eram muito próximos e Noel era um fã confesso do sambista mangueirense. Os dois chegaram inclusive a compor sambas em parceria, como “Tenho um novo amor”, gravada por Carmen Miranda em 1932.
Para homenagear o amigo, Cartola compôs o samba “A Vila Emudeceu”.
Foi a visita do maestro britânico Leopold Stokowski e sua comitiva de músicos ao Brasil, em agosto de 1940, que possibilitou ao gênio Cartola a gravar uma composição sua pela primeira vez.
O maestro esteve na América do Sul com a finalidade de gravar músicas para o Congresso Pan-Americano de Folclore e, no Brasil, teve a colaboração de Heitor Villa-Lobos. O maestro brasileiro indicou ao estrangeiro os melhores artistas da nossa música popular, entre eles o amigo Cartola, que Villa-Lobos conhecia desde o final da década de trinta.

Foram gravadas, cerca de quarenta músicas, quatro delas de autoria de Cartola, mas apenas uma “Quem me ver Sorrir”, parceria com Carlos Cachaça, foi reproduzida na gravação comercial dos dois discos lançados nos Estados Unidos.
Cartola só viria a ouvir a gravação, pela qual recebeu bem pouco dinheiro, na década de setenta.
Em 1940, Cartola recebeu o prêmio maior do samba carioca: foi escolhido o Cidadão-Samba daquele ano. O concurso contava com os principais nomes do samba do Rio de Janeiro.
No ano seguinte, ao lado de Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres, formando o Conjunto Carioca, Cartola fez uma série de apresentações e programas de rádio em São Paulo.


Em 1944, além de Diretor de Harmonia, Cartola se tornou o presidente de honra da Ala de Compositores da Mangueira. Acontece que, dois anos depois, novos acontecimentos o afastariam da Escola.
Primeiro, o sambista teve uma forte meningite, que durou quase um ano e que só foi superada graças à ajuda da sua esposa Dona Deolinda. No entanto, pouco depois de Cartola se recuperar, a companheira faleceu, deixando-o em estado de enorme tristeza.
No fim da década de 40, com o surgimento de novos nomes no samba, tanto Cartola quanto Carlos Cachaça foram sendo ditos como “superados”, deixados de lado, esquecidos em sua genialidade e caíram no ostracismo.
Um tempo depois, o sambista – passando por dificuldades financeiras – se apaixonou por uma mulher chamada Donária, que não era bem quista no Morro de Mangueira, e o convenceu a deixar a música e o morro.
Com ela, Cartola foi morar em Nilópolis, depois no Caju, e ficou um bom tempo afastado do violão, do samba e da sua querida Mangueira.
Nesse período de grande dificuldade, transcorrido ao longo da década de cinquenta, o compositor foi até tido como falecido.
O encontro de Cartola com Dona Zica – Zicartola
Quem o trouxe de volta ao morro da Mangueira, depois do rompimento do namoro com Donária, foi Dona Zica, irmã da esposa do seu parceiro Carlos Cachaça.
Zica e Cartola se conheciam desde jovens – eram vizinhos no Morro da Mangueira, onde moravam, frequentavam juntos a Estação Primeira de Mangueira – mas nunca haviam namorado.

Cartola estava desnutrido, abatido e entregue à bebida. Também estava com um problema no nariz, que tinha aumentado de tamanho devido a uma doença denominada rinofima.
Mas o encontro com o novo amor o fez muito bem. Zica ajudou o sambista a se recuperar e a conseguir um novo emprego, desta vez como lavador de carros no Pirajá. A nova companheira também se esforçou para trazê-lo de volta para o samba e para a Estação Primeira de Mangueira
E foi então que Cartola, no intervalo do trabalho como lavador de carros, foi até um café e encontrou o importante jornalista Sérgio Porto, também conhecido como Stanislaw Ponte-Preta. Foi Sérgio quem ajudou a reintegrar o sambista no meio artístico.
Zica e Cartola se instalaram em uma casa na subida do morro, perto da quadra da Mangueira e próximo da casa de Carlos Cachaça e de Menina, a irmã de Zica.
Foi na década de 60, quando uma turma da pesada do samba, composta por nomes como Zé Keti, Elton Medeiros, Carlos Cachaça e Nelson Sargento, se viu de repente sem casa ou botequim para se reunir pra beber e fazer seu samba, que um dos amigos e admirador do grupo, Eugênio Agostini, teve a ideia de criar um botequim especialmente para a nata do samba carioca.
Nessa época, Dona Zica, que sempre foi uma cozinheira de mão cheia, trabalhava fazendo marmitas. A ideia genial era que, enquanto Zica cozinhasse, Cartola liderasse o encontro dos sambistas. Nascia assim em 1963, o famoso restaurante Zicartola (combinação de Zica e Cartola) localizado na Rua da Carioca, número 53, lugar que se tornou também o endereço do casal.


O Zicartola é hoje considerado, pioneiramente, a primeira casa de samba do Rio de Janeiro. Foi, não apenas um restaurante, mas o início de um movimento cultural de valorização do samba tradicional e dos seus compositores. Por lá circularam, ao longo dos quase dois anos de existência, nomes como Hermínio Bello de Carvalho, Paulinho da Viola (que começou por lá sua carreira de sucesso), Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Elton Medeiros, Nelson Sargento e o jornalista Sérgio Cabral.
Em 1964, Zica e Cartola finalmente oficializaram a união em uma cerimônia de casamento que contou com a presença de grandes amigos e de muitos jornalistas. Uma das mais belas composições de Cartola, o samba “Nós Dois”, foi escrito especialmente para a ocasião do casamento. Eles viveram juntos por 26 anos, até o sambista falecer.

Nesta época, Cartola também fez uma cirurgia para a rinofima no nariz que o deixou com uma mancha na região, sinal que se tornou sua marca registrada.
Também em 1964, Nara Leão – que até então era conhecida como a Musa da Bossa Nova – começou a gravar e divulgar o trabalho dos sambistas do morro, gravando a icônica canção “O Sol Nascerá”, parceria de Cartola e Elton Medeiros, que foi composta poucos anos antes, de improviso, depois dos dois sambistas terem sido desafiados a mostrar seu talento para a composição em uma roda de samba na casa de Cartola.
Com o fim do Zicartola, que embora não tenha proporcionado lucros financeiros, marcou pra sempre a história do samba, o casal ficou sem dinheiro e se mudou para Bento Ribeiro, onde vivia o pai de Cartola, causando uma reaproximação entre os dois depois de tanto tempo.
Primeiros álbuns de Cartola como cantor
Em 1968, o casal conseguiu retornar para o Morro da Mangueira, onde o próprio Cartola, construiu sua casa própria, no alto de seus 60 anos. Foi na janela desta casa que Cartola e Zica posaram para o segundo LP do cantor, “Cartola II”, em 1976.

Porque foi em 1974, que finalmente – graças ao trabalho de inestimável valor cultural realizado pela gravadora Marcus Pereira e pelos esforços do famoso Pelão, que produziu o disco – Cartola gravou o seu primeiro LP, aos 65 anos.

Muitas das canções imortalizadas nas vozes de outros intérpretes, finalmente foram conhecidas pelo grande público na voz do seu compositor, como “O Sol Nascerá” e também “Quem me vê Sorrindo” e “Alvorada” – lançadas em 1968 no álbum “Fala Mangueira”, do qual Cartola participou ao lado de Carlos Cachaça, Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho e Odete Amaral.
A alegria de Cartola com o sonho realizado foi tanta, que ele imediatamente voltou a compor. O disco, bastante elogiado pela crítica, fez um enorme sucesso e levou todos os prêmios possíveis daquele ano.
Em 1976, o seu segundo álbum também também foi sucesso de público e crítica. A composição “As Rosas Não Falam” – composta depois de uma conversa com Dona Zica no jardim – logo se tornou uma das mais conhecidas do compositor e foi gravada por Beth Carvalho no mesmo ano.
Hoje, a canção é considerada uma das mais importantes da música popular brasileira de todos os tempos. Ao lado dela, lançada no mesmo LP, outra composição antológica de Cartola: “O Mundo é um Moinho”.
Também são desse disco a famosa composição de Cartola “Ensaboa” e a interpretação inesquecível do sambista para o sucesso de Candeia:
Cartola passou então a fazer shows em diversos estados do Brasil e – em 1977 – lançou seu terceiro disco: “Verde que te quero Rosa”. A capa do álbum é uma das fotos mais famosas de Cartola: ele tomando café numa xícara verde e um pires rosa. Na mão que segura a xícara, um cigarro queimando.

Perto de seus 70 anos, o sambista estreou o seu primeiro show individual: “Acontece”, acompanhado pelo grupo “Gato Preto”. Em 1978, Cartola e Dona Zica deixaram a Mangueira e passaram a viver na região tranquila de Jacarepaguá para o sambista. Mas o casal mangueirense manteve o morro sempre no seu coração.

Em 79, foi lançado o quarto LP do sambista: “Cartola: 70 anos”, que trouxe o sucesso “O Inverno do meu Tempo”, parceria com Roberto Nascimento, que fala sobre o envelhecer.
A partir do final da década de 70, a saúde de Cartola foi se fragilizando e as internações se tornavam cada vez mais frequentes. Em 1977, o sambista teve identificado um câncer na tireoide. Mesmo operando, o problema retornou dois anos depois.
No começo de 1980, o sambista teve uma nova internação, desta vez causada por uma hemorragia digestiva. Recuperado, ele comemorou o aniversário de 72 anos com os amigos, mas em novembro o poeta mangueirense voltou a ser internado e desta vez não resistiu.
Seu corpo foi velado no Palácio do Samba, a quadra da Estação Primeira de Mangueira. Na ocasião, as principais Escolas de Samba cariocas mandaram seus estandartes para fazer companhia ao manto verde e rosa. O corpo do sambista foi enterrado no cemitério do Caju, ao som do coro dos presentes entoando baixinho “As Rosas não Falam”.
Dois álbuns póstumos foram lançados: “Documento Inédito” em 1982, com um depoimento de Cartola e oito músicas com o próprio sambista ao violão; e “Cartola Ao Vivo”, gravado em um show em São Paulo, no ano de 1978.
Viva, o eterno Cartola!