É só baixar a temperatura em minha cidade que sinto frio na bunda. Já viu isso? Tenho essa coisa meio esquisita: além dos pés, mãos e pescoço, regiões clássicas na arte de manter o corpo aquecido, minhas nádegas também precisam estar quentinhas para que me sinta confortável.
Para escrever este texto hoje, então, precisei de providências drásticas: peguei meu cobertor mais felpudo e me transformei numa panqueca de plush, enrolada da cintura para baixo.
Voltei cheia de orgulho: havia prestado atenção ao que estava sentindo e atendido à necessidade de me aquecer. Tentei escrever. Nada. Ué. Ainda não estava bem. Meus cabelos estavam molhados, e de nada adiantaria ter a bunda quente se o pescoço continuasse tremelicando de frio.
Então vasculhei o armário em busca do meu cachecol mais macio. Aquele que me envolve com calor e delicadeza. Um abraço azul.
Lembrei de Cazuza. “Eu quero a sorte de um amor tranquilo”, ele cantava. E pensei que talvez nem tudo seja sobre sorte. Algumas coisas podem ser escolhas. Especialmente se nos conhecermos o suficiente para identificar o que pode nos agradar a cada momento.
A música Todo o amor que houver nessa vida é um pedido visceral por um amor inteiro, ainda que complexo. Intenso e pacífico. Doce como fruta mordida. Real como saliva que mata a sede. Cazuza não queria só paixão. Queria abrigo. Queria ser rede que embala. Queria ser sustento. Ser pão, ser veneno anti-monotonia. Queria viver a poesia que a gente não vive. Transformar o tédio em melodia.
Foi quando me vi aqui, transformando um cachecol em colo. Um cobertor em refúgio. Escolhendo, dentro do que é possível hoje, o cuidado como forma de amar. A mim mesma.
A gente corre tanto atrás de amores arrebatadores. De vivências extraordinárias. Mas às vezes o mais revolucionário é preparar um chá quente. Se cobrir de afeto. Escolher o conforto ordinário com a mesma intensidade com que desejamos ser escolhidos.
Hoje minha alma canta Cazuza. Mas quem escreve sou eu. E escrevo assim:
Eu quero o conforto de um cachecol macio. (E, se possível, um cobertor que me aqueça gentilmente – da alma até a bunda).
Minha alma canta:
Todo o Amor Que Houver Nessa Vida
(de Cazuza)
Eu quero a sorte de um amor tranquilo
Com sabor de fruta mordida
Nós na batida, no embalo da rede
Matando a sede na saliva
Ser teu pão, ser tua comida
Todo o amor que houver nesta vida
E algum trocado pra dar garantia
E ser artista no nosso convívio
Pelo inferno e céu de todo dia
Pra poesia que a gente não vive
Transformar o tédio em melodia
Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nesta vida
E algum veneno anti-monotonia
E se eu achar a tua fonte escondida
Te alcanço em cheio, o mel e a ferida
E o corpo inteiro como um furacão
Boca, nuca, mão e a tua mente não
Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nesta vida
E algum remédio que me dê alegria
E algum remédio que me dê alegria



