Baby e meu vizinho do lado

Horácio Guarany é um cantor e compositor argentino que escreveu um dos versos mais profundos que eu conheço: “Se se cala um cantor, cala a vida, porque a vida é toda um canto”. Nessa semana, esses versos tomaram conta da minha alma inteiramente. Por conta de perder Gal Costa, que ao longo dos meus sessenta anos, cresci embalado pela sua voz e sua presença de palco, perdi o meu vizinho, Rolando Boldrin. Permita-me chamá-lo de vizinho, porque somos de cidades vizinhas, ele, de São Joaquim da Barra e eu de Morro Agudo. Quase ali, fronteira a fronteira.

O silêncio da cultura é dolorido. É perda de identidade, de bússola, de semente, de terra, de ar. O Brasil ficou assim por horas. Era como um pássaro que não voltou ao ninho. Demora um tempo para compreender que a vida é assim, demora um tempo para assimilar uma negativa visão do paradigma. Sofremos o apagão desnorteante, o nocaute das brenhas, a infinita solidão da realidade.

Gal Costa contou a minha história nas músicas que cantou. Encantou, me fez feliz, infeliz, alegre e triste. Com ela, aprendi desvendar as antíteses, criar as utopias, vivenciar as distopias. Gal me fez entender que a vida é uma festa do interior, uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel. Dona do sim e do não, diante da infinita beleza, da glória, da vida. Luz do sol, que a terra arde e traduz.

Rolando Boldrin me levou para casa, abriu as janelas, colocou o café no bule, partiu o bolo de fubá e contou um causo. Choramos e rimos sem parar. Quando soube da sua morte,  a alma da minha alma veio me levar para as manhãs de domingo, quando na sala da minha casa, meu pai, minha mãe, eu e meu irmão, éramos encantados por versos tão singelos, que o nosso domingo tinha som de Brasil, Tinha gosto de luz, se é que luz tem gosto, mas acho que Boldrin fazia ter.

Não sei como vai ficar esse país sem o Sr. Brasil. Haverá outro? Por onde andarão os causos de fazenda, de caipiras e brasileiros sem diploma na parede, sem redes sociais, cancelados pela própria existência? Orfandade silenciosa e dolorida. Quem não tem fotografia pra chorar, fica sem parte da alma. Rolando Boldrin era essa alma gentil, capaz de traduzir os sem voz, de espelhar os transparentes e dar poder aos simples e puros de coração.

Aprendi com o meu vizinho que a terra da gente tem a raiz que nós plantamos. Que cada rua e cada casa têm o ardor da porta aberta e da janela tomada de alegria. Aprendi que todo caminho faz sempre a curva da volta e quanto mais olhamos para o horizonte, mais perto nos encontramos do nosso umbigo. Meu vizinho tinha a sabedoria dos ventos, a capacidade de construir atalhos e sorrir os sonhos. Meu vizinho me ensinou que amar a pátria é saber conjugar os verbos unir, respeitar e querer.

Hoje entendo quando ele dizia que uma pessoa tinha ido antes do combinado. Não combinamos a partida, nem festa fizemos, nem cantoria aconteceu. Apenas um recado amargurado no meio do celular. A foto do sorriso sempre ali, e a nota de uma saída repentina do palco. Meu vizinho atravessou a sinfonia e foi cantar noutra freguesia. Não sei se tenho raiva ou saudade. Tenho sobre o fogão de lenha a chaleira de água fervendo e o pó de café na lata da despensa, esperando ouvir o bater das palmas, e o pedido de licença para entrar e comemorar a vida. Meu vizinho comemora a vida, sempre.

Acordamos mais pobres, mais vazios, mais doloridos. No entanto, pela teoria do copo meio cheio, sintamos orgulho de termos artistas tão especiais, capazes de transformar o tempo, em brincar de eternidade, em nos fazer crer, como ressaltou Fernando Pessoa, que tudo vale a pena se alma não for pequena.

Volto ao Horácio Guarany: “ Que todas as bandeiras sejam levantadas, quando o cantor fica com seu grito, deixe mil guitarras sangrarem na noite, uma canção imortal ao infinito, porque se se cala um cantor, cala a vida”.

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