Campinas formou-se como povoado ao longo da primeira metade do século XVIII, quer dizer, nos anos 1700. Logo na segunda metade deste mesmo século, um resoluto Barreto Leme insistiu até conseguir que o Governador da Capitania de São Paulo e o Bispo Frei Manoel da Ressurreição autorizassem a instalação de uma freguesia. A consumação deste ato se deu em uma missa realizada a 14 de Julho de 1774. A partir daí, o então bairro da N.Sra. da Conceição das Campinas do Mato Grosso de Jundiaí passou a ter padre e missa semanal. Que vitória para o povoado!
Em 1797 resolveu-se solicitar a criação de uma Assembleia Legislativa e assumir definitivamente que esta freguesia já estava pronta para se emancipar de Jundiaí.
Pedido feito, pedido atendido. Em 14 de Dezembro de 1797 Campinas passa a ser uma Vila, mas não com o nome de Campinas, sabe-se lá o porquê o nome da Vila era São Carlos, até 1842 quando se resolveu dar o nome de Campinas, como hoje.
Voltemos por um instante até 1797, ao solene momento em que o pelourinho foi inaugurado na esquina das ruas Benjamim Constant e Barão de Jaguara, dando início à Vila de São Carlos. O censo realizado neste ano mostra um total de 2107 pessoas, das quais 4 eram muito queridas, pois eram padres. Na outra ponta, o mesmo censo mostrava a presença de 12 mendigos! O que não era de se surpreender, pois no documento que Barreto Leme recebeu autorizando a formação do povoado constava a recomendação de que todos os que pudessem deveriam ser levados para o nascente povoado, inclusive os que se caracterizassem como mendigos. De fato, Campinas conta com a figura de pessoas não desejáveis para o convívio social desde o seu início e uma série de medidas para ajustar o distanciamento destes indivíduos da sociedade da época começou bem cedo e com medidas que talvez não fossem hoje tão bem vistas pela sociedade de hoje. Por exemplo, o mendicante recebia uma espécie de broche branco para ser colocado sobre a roupa, algo como um sinal de que se trata de um pedinte autorizado. Havia, claro, o dia da semana e o local de trânsito autorizados para a presença destas pessoas, já devidamente cadastradas pelo poder público.
Seria segregação, preconceito ou mera organização social? Deixemos essa pergunta para depois, pois agora precisaremos nos debruçar um pouco mais sobre outros indivíduos que também não eram muito bem vistos pela sociedade na época.
Antes de entrar neste ponto da história, é preciso lembrar que estamos tratando de um tempo pré-revolução industrial, no qual ainda havia uma série de crenças e valores que não haviam sido transformados pela nova dinâmica de relação entre o homem e os meios de exploração dos recursos da natureza. Medicamentos e tratamentos médicos mais eficazes ainda eram um sonho, já que naquele tempo a mesma lâmina que cortava cabelos e barbas também retirava pústulas de braços e pernas- sim, o cirurgião era o barbeiro.
Naquele tempo em que Campinas se fixava como a capital agrícola do estado de São Paulo, havia uma enxurrada de epidemias varrendo nossa cidade. São notadas crises na saúde pública em torno da Varíola, da Hanseníase, da Cólera, da Febre Amarela…
Com os tratamentos disponíveis na época, não havia muito que se esperar de alguém que fosse contaminado por alguma destas pragas que vinham e assolavam a cidade muitas vezes em forma de surto.
Vale ainda dizer que não existia a expressão Hanseníase na época, havia sim a figura do Lazarento, em referência à figura de São Lázaro, o santo cujas chagas são lambidas pelos cães. O nome da doença, portanto, era muito mais uma lembrança dos efeitos sociais do que uma referência ao mal em si.
Outra grande preocupação da sociedade era a contenção da doença que causava as bexigas, quer dizer, a varíola. Para esta não havia cura e o remédio encontrado foi separar os bexiguentos do convívio social a fim de evitar a proliferação do mal.
Neste contexto, de epidemias grassando sobre a cidade e falta de tratamentos eficazes, foram tomadas medidas de proteção para a sociedade, entre elas, a proibição de circulação de bexiguentos e lazarentos pelas ruas do perímetro urbano. Também foi proibida qualquer negociação ou esmola para essas pessoas e ainda foram construídos abrigos para que eles pudessem ser, senão tratadas, pelo menos acolhidas, alimentadas e claro, afastadas do convívio social.
Um destes locais era o Asilo dos Morféticos, cuja descrição de localidade aponta para região onde hoje está o hospital Dr. Mário Gatti. Outro destes locais de acolhida era o Asilo dos variolosos, que ficava na região próxima de onde hoje existe o batalhão da Polícia Militar, na rua General Carneiro.
É preciso lembrar que essa região, naquele tempo, não lembrava em nada a agitação e ocupação do espaço que temo hoje, de modo que se tratava da saída da cidade.
Ao refletirmos sobre isso hoje, pesa sobre nós a dura mão da necessidade de sobrevivência, nos instando a pensar: E se nós estivéssemos lá, naquele tempo de escassez de recursos e medo de pegar doenças? Seriamos nós também pessoas apoiadoras da segregação a que os lazarentos , o s morféticos, os mendigos e bexiguentos eram submetidos? Ou os valores que norteiam nossas vidas hoje gritariam mais alto e nos fariam inserir essas pessoas em uma moral de inclusão social como vivemos hoje?
Os tempos são diferentes, claro e aqui não desejo mais do que propor uma dura reflexão:
Nós, afinal, não somos muito mais do que o resultado de um conjunto de elementos que compõem o cenário no qual nós nascemos, vivemos e morremos e talvez precisemos repetir a máxima: O homem é fruto do seu meio.
Ou talvez valha repetir a pergunta do início deste artigo :
E se você estivesse lá, você segregaria também?