Um escravizado podia ser doutor em Campinas?

Sidney Rocha
Sidney Rocha
Professor de história e geografia, nascido e criado em Campinas e apaixonado pela cidade. Com uma formação acadêmica complementada pela vivência nos diversos estratos sociais que compõem nossa rica região, gosto de contar histórias que encantem e levem à reflexão em busca de um mundo mais saudável para todos os aspectos da experiência humana. Convido você a acreditar que conhecer os fatos do passado faz parte da nossa jornada pela vida, afinal recordar é viver.
Foto: Divulgação

Tito de Camargo Andrade não nasceu em Campinas. Também não nasceu Tito e menos ainda De Camargo Andrade. Ao chegar em Campinas vindo da África na condição de escravo, foi escolhido para uma tarefa menos desesperadora que a dos seus colegas: foi trabalhar na casa da família ao invés da colheita de cana de açúcar, que logo depois foi substituída pela plantação de café.

Cedo aprendeu o fim daqueles que se rebelam contra o sistema escravista, uma vez que viu, de perto, as revoltas de 1830 e 1832 sendo debeladas pois foram descobertas antes que acontecessem. Anos mais tarde ele veria, já velho, outra revolta ser debelada, esta em 1871.

O jovem Tito ganhou alguma simpatia da família Camargo de Andrade, mas não simpatia suficiente para se ver homem livre sem ter que pagar por isso. Ele comprou sua própria alforria e de sua esposa também no ano de 1865 e neste ponto torna-se necessária a pergunta: Como um homem na condição de escravo torna-se rico o suficiente para pagar pela sua própria alforria e de sua esposa? Para responder a esta pergunta, vamos antes conhecer um pouco do contexto social em que ele vivia.

Os anos do século 1800 não foram gentis para os que padeciam de doenças, já que a medicina ainda não era tão avançada quanto nos dias de hoje e por isso o sofrimento do moribundo era muito maior do que poderia ser. O uso de sanguessugas aplicadas ao redor do ânus era um dos tratamentos utilizados para casos de hemorragias digestivas, por exemplo. Já os barbeiros(sim, aqueles que cortam cabelos) não se esquivavam de ganhar uns trocados a mais amputando um braço, uma perna ou extraindo um dente. Quem sabe uma sangria no braço para aliviar a febre? Era também o caso de muitas mulheres falecendo por complicações no parto, procedimento relativamente simples e que podia matar por absoluta falta de cuidados… e de higiene!

Por este tempo os ricos eram operados sobre as mesas de bilhar em suas casas enquanto o pobres não tinham a quem recorrer, senão às figuras dos curandeiros e benzedeiros.

É neste contexto que surge a figura de Tito de Camargo Andrade, caminhando pelas ruas de Campinas trajando sua opa, espécie de manto com abertura para os braços, preta e branca sinalizando que ele pertencia à comunidade de São Benedito. Sua figura com ar sério de talvez um tanto mística era requisitada por populares em busca de seus tratamentos para diversas enfermidades. Ter conhecimento sobre diferentes tipos de ervas e suas propriedades terapêuticas em uma época na qual quase não havia médicos formados era um enorme diferencial e claro que Mestre Tito conseguiu se firmar como pessoa de posses na cidade, já que era dono de um status que o colocava na mesma coluna dos doutores quando a questão era resolver problemas de saúde. Nos conta a Dra. Celia Xavier em excelente pesquisa para sua tese de doutorado, que até mesmo o ilustre doutor Ricardo Gumbleton Daunt chegou a indicar mestre Tito para pelo menos um de seus clientes.

De cliente em cliente, acumulou fortuna que o permitiu comprar, além das alforrias, uma casa na rua barão de Jaguara, outra na rua Luzitana, um terreno próximo do estádio do Guarani… Pois é, as artes de curar, definidas em leis da época, realmente rendiam uns bons dinheiros.

Além de ganhar seu próprio dinheiro, mestre Tito também se deu ao trabalho de caminhar pelas ruas pedindo donativos para a construção da igreja com a qual ele sonhou para cultuar suas crenças católicas, a igreja de São Benedito.

São Benedito captou a atenção das comunidades negras na época da escravidão por ser negro, assim como Santa Ifigênia, também negra foi muito requisitada como divindade presente nas comunidades negras da época. Outra figura católica extremamente amada pela comunidade negra do Brasil era a Senhora do Rosário, essa por sua vez, branca e dona de um rosário que lembrava um instrumento de fé dos africanos e daí a sua simpatia para com os negros daqueles tempos.

Mestre Tito recolheu donativos e encabeçou o sonho de construir a igreja sobre a sepultura do padre Melchior, no mesmo local onde anteriormente funcionou o cemitério dos cativos, leia-se escravizados. Apesar dos seus esforços ele não chegou a ver a igreja terminada, pois faleceu antes mas a sacristia ainda mantém ali sua fotografia ao lado da fotografia da sra. Ana Gonzaga, que na época ajudou a recolher donativos nos clubes e eventos culturais da cidade.

Quando faleceu, em 1882, deixou uma família bem estruturada e organizada. Claro, não faltaram discussões em torno do espólio de 24 contos de réis, algo como que o suficiente para comprar uma casa em um condomínio fechado de alto padrão nos dias de hoje.

Uma vez falecido, saiu de cena no dia a dia da cidade e acabou esquecido. Sobre sua sepultura, apenas uma tosca cruz de ferro e nada mais. Na década de 1960, tantos anos depois, uma discussão na câmara municipal acendeu o pavio da razão que autorizou, em caráter especial, seu enterramento dentro da igreja de São Benedito, conforme foi seu último desejo.

Hoje, quem frequenta a igreja costuma conhecer um pouco sobre ele e se alguém conhecer o gentil padre Primo, responsável pela igreja atualmente, peço que o informem que a pesquisa da dra. Célia Xavier dá conta mesmo que seus restos mortais descansam sob os pés daqueles que adentram ao templo para cultuar sua fé católica.

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